sexta-feira, 29 de julho de 2011

A Avó Maria


Decorria o ano de 1954 quando o  António José emigrou legalmente para  França,  fugindo ao salazarismo e à miséria que se vivia em Portugal.
António José, solteiro e filho único, o que era coisa rara naquela época, abalou com o pouco ou nada que tinha e deixou pai e mãe de boa saúde na aldeia onde moravam no norte do país. Já estava habituado ao frio e não estranhou o clima do norte de França onde passou a viver e trabalhar, sabe Deus em que condições. Lá foi levando a vida, e desde trabalho na construção civil até biscatada, o António José topava a tudo. Trabalhava muito, sempre com a ideia de enriquecer.
Para combater a solidão que lhe ia na alma e já quase a chegar a trintão, achou que tinha chegado a altura de casar e constituir família. Procurou namorada e acabou por casar com a Alzira. A Alzira foi-lhe apresentada por um colega de trabalho de quem era irmã. Esse colega era o seu companheiro de quarto e confidente.  Ficaram namorados e para conforto do António José, a Alzira era natural de uma aldeia vizinha da sua o que lhe deu algum sossego, pois foi mais fácil ter informações da rapariga. Depois dos papéis tratados lá se casaram. O casamento não foi digno de registo, porque o António José não deixou a Alzira comprar o vestido de noiva, nem gastar dinheiro na boda, o que a deixou muito triste. O António José sempre lhe dizia, não te preocupes que quando formos em Agosto à terra, fazemos lá um casamento de arromba. Todos os anos a boda era adiada, porque o António José achava que no ano anterior já tinham gasto muito dinheiro com as férias. E assim, ano após ano lá foi iludindo a Alzira e nunca cumpriu com o prometido.
Ficarem por cá era impensável, porque gostavam da França e aí continuaram. A vida sempre era melhor do que cá e os sonhos mais fáceis de realizar. António José entretanto foi tendo várias profissões, mas por falta de escolaridade nunca pode sair do trabalho não qualificado. A Alzira fazia limpezas nas casas das madames. Com esforço, educaram os seus dois filhos, um casal, a quem deram cursos superiores. O rapaz tirou medicina e a rapariga economia.

Apesar de serem uns mouros de trabalho, nunca fizeram fortuna. Investiram na educação dos filhos, tinham o seu carro e no verão faziam questão de vir passar as férias a Portugal, e lá vinha a família toda visitar os parentes.
Nunca o António José levou a Alzira ao Palácio de Versalhes, nem tão pouco à Notre-Dame de Paris.
E assim se foram passando os anos e nunca o casal pensou regressar.

Alguns anos mais tarde, a mãe do António José ficou viúva. Como ele era filho único as coisas ficavam difíceis de gerir à distância. A mãe não teve outro remédio e foi morar para França pois era a melhor solução para todos. Depois de muito pensar e discutir com o filho, a avó Maria lá se decidiu a emigrar com a idade tão avançada. Para esta decisão muito contribuiu a promessa do seu querido filho de que seria enterrada no cemitério da aldeia que a viu nascer. Ficou assim mais tranquila pois tinha de vir fazer companhia ao seu Joaquim. Partir era mais sensato do que ficar sozinha na aldeia de onde já muitos tinham saído, pensava ela quando rezava e falava à noite com o falecido.
Aproveitou a visita anual do filho e preparou a sua ida para França, com muita mágoa e tristeza, por deixar a casinha de toda a sua vida e o Joaquim na sua última morada. Tão bonita que estava a campa, pensava a Avó Maria quando, pela última vez rezava pelo Joaquim, aos pés da campa onde tinha enterrado parte das suas poupanças.
Assim, lá foi a Avó Maria que nunca tinha saído da aldeia para sítio nenhum, nem para ver o mar, nem para ir a Fátima.
Os anos da França da Avó Maria não foram lá muito bons para ela. Não falava francês e não entendia aqueles costumes afidalgados dos netos e muito menos aqueles hábitos de comer a salada na frente e os queijos bolorentos no fim da refeição.
Nos primeiros tempos andava um pouco doente mas não sabia bem o que tinha.
- São só saudades, minha querida avozinha! - Dizia-lhe o neto enquanto a auscultava e lhe media as tensões.
                                                                                   
Anos depois, e sem que ninguém suspeitasse, a avó Maria faleceu repentinamente aos oitenta anos, uma semana após o bonito e dispendioso festejo que a família lhe preparou para tão bonita idade.
Como a morte não escolhe a melhor altura, o António José tinha agora um problema, o de levar a mãe para enterrar em Portugal como lhe tinha prometido. Ele sabia que ia gastar uma pipa de massa, que não tinha,  para levar o corpo. Ficou muito apreensivo e teve uma conversa muito secreta com a Alzira.
No próprio dia do falecimento, não disse nada a ninguém e, pela calada da noite, preparou o carro e o atrelado que costumava levar nas férias e abalou em viagem.
Nas viagens longas, a paragem a meio do caminho era obrigatória. O cansaço e a idade do António José já não lhe dava segurança para fazer tudo de seguida.
Já em Espanha e depois de encherem o depósito na área de serviço ficaram a dormitar no parque próprio para as pequenas paragens dos viajantes, mais à frente. O medo era muito.
Passadas duas horas a Alzira foi a primeira a acordar e saiu do carro para esticar as pernas. Olhou para as traseiras do carro e   deu um grito.
- Ai Tó Zé, anda cá depressa! - E pondo a mão na boca não disse mais nada.
O marido veio cá fora e ficou branco como a cal vendo a mulher a apontar para o carro. O atrelado tinha desaparecido. Enfiaram-se os dois no carro e não tinham palavras. Ficaram completamente mudos.
 Passados uns largos minutos e depois de tanta aflição o António José disse:
-  E agora Alzira? E a promessa?
- Não sei que te diga! A ideia foi tua!  Tu e a tua mania de poupar é no que dá. Se não fosses tão unhas-de-fome nada disto nos estava a acontecer.
 - Olha lá! Quem é que ia adivinhar uma coisa destas?! Escusas de ralhar que não resolves nada com isso! Tinha de ser logo o nosso atrelado, disse o António José com as duas mãos agarradas à cabeça.

- Vamos à polícia! - Disse a Alzira.
- Nem pensar, vamos presos!
- Isto não estava nos meus planos! É preciso ter muito azar. Estamos de mãos atadas. Todas as ideias que me vêm à cabeça não vão resultar!
 - E agora que fazemos? - Perguntou a Alzira que tinha a cabeça mais que vazia.
Muito chateado e com o coração apertadinho de remorsos disse o António José:
- Não dá para continuar viagem, por isso só temos uma solução! Voltamos para trás! 
O António José  decidiu e assim aconteceu.

Mais tarde e longe do local do roubo estão dois homens de cerca de trinta anos, estarrecidos, a olhar para o atrelado roubado.
Manolo, de olhos esbugalhados e a tremer que nem varas verdes gritava:
- Não pode ser!!! - Isto não nos está a acontecer!
- Está calado, não berres! - Gritava por sua vez o Pepe, ajoelhado e a benzer-se com a mão esquerda e a mijar-se todo de medo:
 - A culpa é tua! Tu é que escolheste este atrelado. Por mim, nesta noite não tinha saído de casa. Parece que já adivinhava. Tinha uma pulga atrás da orelha a dizer - não saias, hoje é  dia  mau -  mas tu passaste lá em casa e obrigaste-me! Agora descalça a bota!
Desesperado, Manolo não ouvia nada do que o Pepe dizia. Só  sentia a cabeça a fumegar, o corpo a transpirar e ele sem saber se havia de rir ou de chorar.
Sentou-se numa rocha e começou a raciocinar.
Depois de se acalmar, inspirando bem fundo, disse:
- Que roubo é este que não dá para passar a mercadoria a patacos  e ainda temos um problema de morte para resolver!
 - Olha lá, tu tiraste a matrícula do carro?
- Eu não. E tu?
- Também não! Estamos de mãos atadas!
- Não podemos ir à polícia?
- Claro que não.
- Só temos uma solução. Fazemos nós o funeral da aboelita. Seja lá ela quem for, ficará bem guardadinha neste caixão andante, lá no cimo do monte, enterrada nas ruínas daquela capelinha.
 - Porreiro pá, quando eu morrer vou querer um caixão assim,  porque não me vai faltar o ar. Olha lá, tiramos as rodas ao caixão ou deixamos assim?

Todas as noites o António José sonha com a mãe que lhe diz:
- Descansa meu filho. Eu sei que não foi por mal. A culpa foi minha, que nunca te disse que tinha uma saca escondida em casa  com o dinheiro para o meu funeral.
Sorridente, dava um beijo cheio de ternura na testa do filho e desaparecia.

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