quinta-feira, 29 de setembro de 2011

TI ZÉ DA BOINA

Noites e noites sem dormir. Andava assim o Ti Zé da Boina, desde que recebeu a carta de despedimento da fábrica de calçado onde trabalhou desde sempre. Já lá iam mais de sete luas e o Ti Zé não se conformava. Nem ele, nem a sua mulher, também de sempre, a Bina. Não havia nada a fazer. Tinha de se convencer que assim era. Com a idade que tinha, ninguém o queria para trabalhar. Infelizmente, como ele, havia muitos mais na vila.

Cabisbaixo e muito pensativo andava o Ti Zé. Nem o sol lhe aquecia a alma. Nem a Bina o conseguia animar com o seu feitio brincalhão. Dona de casa competente, a Bina entretinha-se a fazer de tudo um pouco. Cuidava da casa, dos bichos, da horta e assim se mantinha ocupada, o que era bom para a sua cabeça. Ti Zé, sentia que tinha de fazer algo. Mas o quê? Queimou as pestanas de tanto pensar e afinal a solução era bem simples: Sapatos! Era o que ele sabia fazer e ia continuar.

Receoso, muito inseguro, teve de ganhar muita coragem para contar à Bina o que andava a pensar: montar uma oficina nos anexos e fazer sapatos. Não eram quaisquer uns. Eram sapatos especiais. Sapatos para palhaços.

A Bina ouviu com toda a atenção mas ficou muito receosa quanto ao sucesso da ideia do seu marido. Ficou a moer na ideia. Afinal não há assim tantos palhaços. Nem vê-los, nas aldeias do interior. Como é que iriam fazer sair os sapatos dos anexos?

No fim-de-semana seguinte a conversa repetiu-se, mas, desta vez, com o seu neto favorito, o mais velho, de quem era um grande admirador pelo seu feitio optimista e brincalhão.
- É fácil avô. Eu trato das vendas! - dizia o neto todo entusiasmado pois sabia que na volta ia receber uns trocos.

O avô confiou. Sem ter de sair de casa e só com o computador, o Ti Zé continuava sem perceber muito bem como é que ele ia fazer sair os sapatos dos anexos.

Ti Zé idealizou os seus primeiros sapatos de palhaço muito coloridos, grandes para burro, cordões grossos, muito garridos, muito redondos, altos na frente e meteu mãos à obra, com o seu coração a transbordar de alegria que nem lhe cabia no peito.

Sempre muito entusiasmado o Ti Zé foi acumulando os pares de sapatos nas prateleiras do anexo durante alguns meses.

A Bina até achava piada aos folclóricos sapatos mas falava com os seus botões. Será que vão mesmo entrar no circo?

De repente, com grande surpresa e espanto do Ti Zé os telefonemas começaram a chover. Telefonemas e não só. Os próprios artistas faziam questão de ir pessoalmente fazer a compra. E todos ficavam contentes com a qualidade do trabalho do Ti Zé.  A perfeição era por demais evidente e mais espantados ficavam os palhaços quando experimentavam tão agradável conforto nos seus pés. Até parecia que caminhavam nas nuvens, de tão fofos que eram.

A Bina ficava babada de orgulho quando toda a gente lhe falava no sucesso, que já tinha passado a fronteira da vila.

Choviam encomendas. Foi um passo até aparecerem os palhaços dos circos estrangeiros. Aí, o Ti Zé da Boina passou a ter os melhores sonhos da sua vida. Sonhava muito e até se conseguia lembrar de muitos deles de manhãzinha, enquanto se barbeava. Alguns eram bem estranhos e divertidos. Sonhava muitas vezes, que voava.


Um dia parou na rua um carro de matrícula estrangeira. À sua porta apresentava-se um gentleman. Receberam-no o melhor que sabiam e com a ajuda de um intérprete que ele trazia, lá se entenderam. O Ti Zé da Boina acabava de receber uma encomenda muito especial. O gentleman queria uns sapatos muito originais feitos conforme o seu próprio desenho. Todos os pormenores, cores, feitio, sola, tudo… e mais umas asas! O Ti Zé até achou piada. Fazer uns sapatos com asas!!! Era um desafio, mas não sabia à partida como ia fazer semelhante esquisitice. Chegou mesmo a pensar nas coloridas penas das suas galinhas.

Muito amor e dedicação pôs o Ti Zé na confecção dos sapatos alados do gentleman.
O resultado final até surpreendeu o próprio Ti Zé. No entanto era sempre uma angústia separar-se daquelas peças que ele fazia com tanto amor e carinho. Parecia-lhe que estava um filho seu a sair pela porta fora.

Os sapatos alados lá viajaram sozinhos até ao The Rainbow  Circus, na velha Inglaterra. O palhaço gentleman tinha criado um número novo para aqueles sapatos. Até o andar que tinha de fazer era diferente. Parecia que tinha ovos frescos entre as pernas!
Logo na estreia ele achou que os sapatos tinham um comportamento estranho, parece que tinham vontade própria e o queriam levar para outro lado mas ele não ligou. Alguns espectáculos depois, essa tendência foi-se acentuando e o palhaço gentleman teve de redobrar a sua atenção no comportamento dos sapatos alados. Decorridos alguns dias de estrondosas actuações, os sapatos alados resolveram dar o ar da sua graça.

Uma noite, estava a sala cheia, como de costume, o público entusiasmadíssimo, quando, de repente, os sapatos saíram dos pés do palhaço e começaram a dançar sozinhos no palco,  que nem umas marionetas. A assistência entrou em delírio e o palhaço gentleman estava muito surpreendido sem saber bem o que fazer.

No espectáculo seguinte os sapatos ainda foram mais longe. Levaram também os pés do palhaço gentleman e dançaram ao ritmo da música. Meia dúzia de passos e voltaram a encaixar nas pernas do palhaço, que entretanto não teve outra saída senão sentar-se no chão de pernas cruzadas.

Indescritível a reacção do público. Aplausos e mais aplausos, toda a plateia de pé.

O palhaço-gentleman é que não percebia nada do que se estava a passar. Apanhado de surpresa, fazia a cara mais ingénua deste mundo, o que lhe assentava muito bem.


Apesar de todo o sucesso, o palhaço-gentleman andava muito preocupado e com mau dormir, pois não sabia o que poderia acontecer no espectáculo seguinte. Não havia dúvida. O Ti Zé da Boina tinha feito os sapatos com vontade própria e isso não fazia parte da encomenda. Num sonho o palhaço-gentleman viu o Ti Zé na assistência com uma cara muito comprometida.

Apesar dos receios o palhaço-gentleman resolveu arriscar e continuar com o mais estrondoso número de toda a sua carreira.

No espectáculo seguinte, contra todas as expectativas, os sapatos não saíram dos pés mas uma sensação de levitação começou a percorrer o corpo do palhaço-gentleman. Incrédulo e muito sorridente, olhou para a assistência e lá estava o Ti Zé da Boina ao lado do seu neto, na primeira fila, com um ar muito feliz a dizer-lhe adeus. Nesse instante os sapatos começaram a bater asas e era só ver a cara do público a olhar cada vez mais para cima, a esticar o pescoço, esticar, esticar, que nem girafas para ver o palhaço-gentleman,  a subir por artes mágicas, furar a tenda e desaparecer.

Nunca visto! Seria ele um palhaço ou um ilusionista?

Um silêncio sepulcral invadiu aquela sala. O tempo parecia que tinha ficado em aflitiva suspensão. Os segundos eram eternos. De repente, as bocas abertas de espanto começaram a gritar em uníssono, volta! Volta! Volta!

E nada. Nada de palhaço. Nada de gentleman, nada de sapatos…

O palhaço que deveria aparecer para receber tão calorosos aplausos não voltou.

Ainda hoje, quando aparece o arco-íris no céu, se vê o palhaço-gentleman deitado na risca verde, com os seus brilhantes sapatos vermelhos, de asas brancas e compridos cordões azuis que cresceram e quase tocam na copa das árvores.

M.

(Este conto é dedicado à minha amiga Majo que festeja hoje o seu aniversário.)







quinta-feira, 22 de setembro de 2011

A caminho das estrelas

Desde que saíram do armazém e foram escolhidos para fazer parte do elenco da montra começaram a sentir-se muito felizes. Nunca mais pararam de conversar. Gostavam da nova vida. Podiam apreciar os curiosos olhares e os gostosos comentários à sua condição de muito útil objecto de protecção de pés femininos. Porém, tinham nascido com uma forte dúvida existencial.

Naquela noite de lua cheia a conversa desenrolava-se de forma amena.

- Não te cansas de ser sempre da direita?

- E tu? Não te cansas de ser da esquerda?

- Enfim! Que posso eu dizer! Para além de sermos gémeos já nascemos assim. Fui feito para a direita e tu, quer queiras quer não, foste feito para servir a esquerda. Não nos deram escolha. De qualquer forma estou feliz assim.

- Eu não estou feliz. Só me sentirei melhor quando me apanhar na calçada. - Dizia o    esquerdino que gostava mais de caminhar do que de falar.

Conversavam muito enquanto estavam na montra à espera de uns pés para lhes dar vida e poderem caminhar por essas ruas citadinas a fazerem inveja a quem não os tinha escolhido. Esse dia não demorou a chegar. Por lá passou a Manuela, que gostava de namorar as montras de sapatos e não resistiu a tanto charme.

Embora de tacão alto, não eram do tipo mata a barata ao canto, ou melhor, não eram os clássicos stiletto. Tinham uma cor não muito definida, entre o cinza levemente azulado, fechados e lisos, ofereciam algum conforto e não mordiam os pés. A escolha devia-se ao fato azul claro, também não muito azul, clássico, calça e casaco que lhe tinha custado uma pipa de massa, não fosse ele um Caramelo.

Palradores como eram, mesmo dentro do armário eles fartavam-se de cortar na casaca. De porta fechada podiam dizer o que lhes apetecesse. Desde comentar o árduo dia de trabalho da Manuela, a sua cuidada condução matinal na ida, à apressada condução de regresso a casa, aos que cruzavam na rua, tudo servia para motivo de tagarelice.

Adoravam andar no passeio, mas por cisma da Manuela só saíam com o fato Caramelo e carteira a condizer. Nesses dias eram os sapatos mais felizes do mundo. Não conheciam o que era o mau tempo, porque o fato era de meia estação. Curiosa, esta expressão de meia estação. Tanto quanto eles se lembravam nunca saíram a meio do Inverno.

- Adiante que atrás vem gente. - Dizia o da direita com um ar muito divertido.

- Que interessa isso? Quem manda aqui não somos nós. Só temos de obedecer. - Dizia o da esquerda.

- Então! Não te entendo. Gostas tanto de arejar e estás a refilar!

- Já viste bem aqueles chanatos naqueles pés tão horrorosos? - Perguntou o da direita com o ar mais trocista deste mundo. - Nunca te falei no assunto mas os sapatos que mais admiro são os dos palhaços.

- Deixa lá isso. Aprecia este lindo dia de sol, tão gostoso, pois não sabes se ele vai voltar a aquecer a sola do teu sapato. - Disse todo prazenteiro o esquerdino.

- É mesmo isso, esquerdino. Vamos agarrar o verão e deixar a conversa para o armário.

O resto da caminhada foi feita em silêncio. A Manuela tinha o hábito de aproveitar a parte que sobrava do intervalo de almoço para passear e ver as montras de soslaio.

As estações iam mudando e os sapatos faladores foram invadidos por uma profunda tristeza. Perceberam que já não saíam mais do armário. Andavam muito sorumbáticos e intrigados com tamanha clausura, até que foram ter com o fato Caramelo para saber o que se estava a passar.

- Olha lá, ó caramelo, sabes porque é que já não saímos juntos? - Perguntou o da direita que era o mais falador.

- É curioso, também tenho andando muito angustiado e intrigado com essa dúvida, mas como já não aguentava mais, ontem, enchi-me de coragem e perguntei ao príncipe de gales e ele disse-me:

- É com alguma apreensão que te vou contar a história, mas acho que nem a Manuela sabia que a vida dela ia dar uma grande volta. Pareceu-me que ia ser bom, mas como em tudo na vida, há sempre um lado bom e outro menos bom, não sei se ela se vai adaptar a tão grande mudança. Fiquei muito honrado por ter sido eu o escolhido para aquela difícil entrevista. Não foi fácil mas pelo que ouvi, a proposta era boa e a Manuela jubilou.

- Ora bolas! Então é isso! Também deixamos de trabalhar? - Dizia o esquerdino muito arreliado e desesperado.

A Manuela, que pelo B.I. media 1,73m já não precisava de saltos altos para fazer figura. Começou a usar saltos baixos. Tristes andavam os sapatos, ou melhor não andavam. Falavam muito no seu destino. Alvitravam palpites mas nada acontecia. Dias e dias fechados no armário… Estação atrás de estação e, nada…

Já se sentiam quase semi-mortos, mesmo moribundos quando inesperadamente a Manuela resolveu fazer uma arrumação no roupeiro.

- Acorda! Acorda! É hoje que vamos passear! - Dizia todo entusiasmado o da direita quando sentiu uns quentes raios de sol a invadir o armário.

- Ser…áaa     ho…jeeee! – Balbuciava o esquerdino todo remelento, ensonado e sem brilho nenhum.

- Vamos lá dar um pouco de corda aos sapatos! -Dizia o Caramelo a rir. – Consolem-se comigo meninos, que também sinto na pele um futuro cheio de incertezas.

Cinzento, estava o futuro. A porta do armário estava aberta, não para um passeio, mas para uma grande arrumação. Sem saber bem o que fazer, a Manuela meteu os sapatos que já não calçava numa saca e levou-os para a garagem. Triste e choroso, o esquerdino lamentava-se:

- Perdemos estatuto. Estamos condenados! Lixo, meu irmão! É o lixo o nosso fatídico destino. Daquela confortável prateleira estamos metidos num beco sem saída!

- Tem calma. Ainda nem tudo está perdido. Podemos ir parar a um par de pés simpáticos, cheirosinhos, sem joanetes e bem pedi curados. – Consolava-o o da direita.

-  Ainda te sentes assim tão jovem?

- Claro, estou como novo. Rompo estas e mais meias solas.

- Estou para ver! Eu vou hibernar até à nova estação, que nem um urso polar.

Um dia a Manuela aprendeu com umas amigas umas técnicas de artes decorativas e no verão utilizou a garagem para alguns trabalhos. Findos estes, seguiu-se uma breve arrumação naquele espaço o que a fez tropeçar nos sapatos.
Olhou para eles e como eram interessantes, a Manuela resolveu transformá-los, sem saber qual a utilidade que lhes podia atribuir, mas uma coisa era certa, sabia que iam ficar muito bonitos.
Começou por colar um bocado de papel ali, bem a direito, outro acolá, mais atravessado, um no interior, bem discreto, outro no exterior, bem colorido, agora mais um no calcanhar, para condizer e logo outro na biqueira, para marcar presença,  jogando sempre com as formas e cores das tiras de papel e escolhendo sempre o lado mais fotogénico do sapato. Nas suas mãos, surgiam uns sapatos alegres e originais, renascidos.

 Entretanto, ia ouvindo os curiosos comentários.
- Olha o meu tacão! Acreditas que lhe nasceu um olho azulão? - Tão espantado estava o esquerdino.

- Não te admires, que acabou mesmo agora de florir uma rosa vermelha no meu tacão. E  uma boca feminina, muito sensual, acabou de se colar ao meu calcanhar!!! Acreditas esquerdino?

- O que é que ela vai colar na minha biqueira? Teremos de esperar até amanhã para ver. Ela está a lavar o pincel. Vamos dormir um pouco. - Dizia sossegadamente o esquerdino que confiava no bom gosto da Manuela.

Passaram a noite a coçar-se por causa da cola. Acordaram estremunhados com os passos da Manuela.

- Olha, olha, lá vem ela! Vamos ver o que vem a seguir. Hoje ainda estou mais curioso do que ontem. - Comentava o da direita.

No conjunto de tantas imagens, Manuela lá ia escolhendo e colando os bocados de papel.

- Agora é que estou a gostar! A minha biqueira tem pés descalços, um sapato preto, uns dedos com unhas pintadas de azul e uns morangos. Achas bonito esquerdino?

- Vais ficar cheio de inveja! Olha para a minha biqueira! Estou que nem uma cereja em cima do bolo. Adorei! Já viste que “fashion”  estamos?! Melhor do que qualquer par da colecção Primavera/Verão da próxima época. Somos únicos!!! Como te dizia, o final feliz está a chegar. - Afirmou o esquerdino.

Depois de prontos a Manuela fotografou-os.

- Já viste onde estamos esquerdino? Estamos na Internet! - Disse o da direita.

- Internet? Que é isso irmão? Isso é um destino? Já não saímos à rua?

- Somos sapatos reais e podemos fazer caminhadas virtuais. - Esclareceu o da direita.

- Estou todo baralhado! Já não sei se sou da esquerda ou da direita! Mas, pelo que me parece podemos ser eternos? E podemos caminhar até às estrelas? E podemos andar sempre juntinhos? Estarei a pensar bem? Ai que feliz eu vou ser! - Suspirou profundamente o esquerdino.

- Olha bem para o que te digo! Nunca seremos sapatos de defunto.


quarta-feira, 7 de setembro de 2011

7 DIAS



hoje, sinto-me poeta

ontem, fui profeta
amanhã, vou ser pintora
sábado, vou ser pensadora
domingo, vou ser cristã
segunda, vou ser pagã
terça, vou lavrar a terra
                        podar as roseiras e vindimar
quarta, vou ser lavadeira
                        e as minhas mágoas ao rio vou lavar
quinta, vou fazer pão
                        e acabar o dia com uma oração
sexta, não ser que faça…
já sei!
vou percorrer os caminhos até à senhora  da graça.

M, 7 de setembro, 2011
www.bebebabel.com.pt

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Requiem d-moll KV 626



A rapariga, com um andar felino, percorria os profundos corredores desertos,  silenciosa e delicadamente. Repentinamente, junto à saída de emergência para as traseiras na porta leste, tropeçou numa coisa escura e roliça que quase a atirava ao chão. Retomou o equilíbrio e tentou identificar o inesperado obstáculo, que, para seu espanto, já lá não estava. Intrigada, olhou à sua volta e descobriu no virar da esquina, um olho luminoso que a fitava fixamente. Foi-se aproximando lentamente e exclamou:

- Um bichano por aqui? Sabes que me pregaste um susto de morte? Seu safado! – resmungou ela, meio séria, meio a rir. E perguntou:

- Como te chamas?
- Miau…miau ….miau … - respondeu o gato muito seguro de si.  - Eu não tenho nome, sou o gato sem nome, ou melhor, a gata sem nome. Ouviste bem? G A T A!

- Ok, ok, já percebi. Mas que faz uma gata sem nome neste corredor?

- Ora essa! Não faço nada, estou só a passear.

- Pois é,  gata sem nome, mas vais ter de ir de requitó para a rua, porque aqui não podes ficar. E já agora, por onde é que tu entraste?

- Isso não é da tua conta! Conheces os cantos todos à casa, mas ainda te escapam alguns buracos. Descansa, que ainda nos vamos encontrar mais vezes. Miau…

E de repente, tal como apareceu, desapareceu.

A Sofia ficou divertida com esta cena tão inesperada e lá continuou a sua ronda. Com um leve sorriso nos lábios, percorreu o edifício que já se encontrava fechado ao público. Ia caminhando e pensava na enigmática conversa que teve com o bichano das quatro patas, que era uma gata já bem adulta.

Passados uns dias,  a Sofia já tinha esquecido o encontro da gata, quando no corredor silencioso ouviu um miado. Parou, olhou para trás e lá estava a gata sem nome.

- Olá. Outra vez por aqui? Já te disse que não podes frequentar esta casa? Vais ter de sair, minha linda bichana.

- Para tua informação, ficas a saber que já moro aqui. Cansei de ser gata de rua e desempregada. Agora tenho uma ocupação muito importante. Miau…

- Pois, pois. Eu, que sou licenciada em História, ando aqui a fazer vigilância e tu, gata da rua, vens dizer-me que tens uma ocupação muito importante?!

- Cada um é importante à sua maneira. Eu digo-te que ainda vou ser famosa e vais ouvir falar de mim. Miau…

E com o rabo levantado, a gata sem nome, desinteressada da conversa afastou-se suavemente, calcando com as suas delicadas patas aquele chão de mármore  que lhe era tão macio e confortável.

Sofia ainda soltou algumas palavras mas que por falta de resposta caíram no chão, sem o menor ruído.

No dia seguinte, a gata sem nome, aparece em frente da Sofia saída do corredor do lado direito e parou mesmo aos seus pés.

- Terceira vez! É a terceira vez que te vejo. – Contabilizou Sofia, desportivamente.

- Sim, sim. Vamos ter uma conversa muito séria. Senta-te naquele sofá e ouve-me com atenção. Miau…

A Sofia obedeceu  às ordens da gata sem nome e sentou-se.

- Tens de ser breve pois tu sabes que as minhas rondas são cronometradas e não posso quebrar o esquema senão sou despedida.

- Vou ser breve. Não contes a ninguém, mas se calhar ainda vais ver mais gatos por aqui.
É um segredo entre nós e como já sei que gostas de gatos, não vais estragar os meus planos. Eles sabem quais os caminhos que podem percorrer e a que horas, por isso não te vamos criar problemas e quando formos famosos, tu vais sentir muito orgulho em nos ter ajudado. Miau…

E como de costume, a gata sem nome desaparecia de rabo no ar, sem deixar rasto do seu destino.



Era lá que tudo se passava.
Na cave, junto às máquinas do ar condicionado, havia um grande espaço onde estavam, em jeito de arrumos, alguns objectos tais como escadas, secretárias, cadeiras, bancos, etc. Os gatos já se tinham assenhorado daquele espaço e adoravam aquele quentinho que saía da máquina do ar.

A gata sem nome tinha reunido ali uma trupe de parceiros, vindos das ruas e das ilhas circundantes. Todos os gatos das redondezas que ela conhecia tinham sido convidados. Os filhos dela, os netos, os primos, os amigos, todos os que sabiam cantar, estavam lá. A gata sem nome, porque gato de rua não tem direito a nome, mas também não precisa, estava muito empenhada na ideia que tinha tido e que lhe estava a dar água pelos bigodes porque aqueles vadios peludos ainda não tinham apanhado bem a ideia. A ideia andava no ar, mas ainda não lhes tinha entrado bem no pelo.  Despreocupados, diziam uns para os outros:

-  Temos de virar cantores de música clássica! – Disse a gata tigrada da Rotunda da Boavista.
-  Foi essa a tarefa que a gata sem nome nos atribuiu, em troca de abrigo seguro e comida boa. – Confirmou o gato amarelo sem rabo.

- Temos de afinar a garganta e cantar bem atinados, nada de desgarradas. – Cantarolou o juvenil siamês.
- Pensando bem até que é uma boa ideia. Nada como experimentar. - Dizia o mais novato e traquinas lá do sítio.

Meteram patas à obra e todos os dias ensaiavam. Uns, nos degraus das escadas, outros, nas cadeiras, outros nas secretárias, todos juntinhos em forma de coro. A gata sem nome, que já tinha fato de maestrina por natureza, ficava em frente da trupe a dar as suas dicas seguindo a partitura.

Começaram por ensaiar coisa simples, que ela tinha encontrado no arquivo mas o seu objectivo era bem maior. Clássicos! Eram os clássicos que a fascinavam!

Trabalharam muito e com muito entusiasmo de gato. No fim de alguns meses o resultado estava à vista. Os peludos todos tinham as vozes bem afinadas e dentro do tom.

Uma noite o director artístico da Casa da Música resolveu ficar a trabalhar até mais tarde. Andava aflito atrás de um trabalho que misteriosamente lhe tinha desaparecido.  Lembrou-se que talvez tivesse ido nalguma gaveta da sua secretária velha que foi arrumada na cave. Para não ter de o repetir, lá foi ele fazer a busca.

Ia descendo as escadas e ouvia um coro a cantar. Aproximava-se cada vez mais e o  coro ouvia-se cada vez mais nítido. Entrou nos arrumos e para seu grande espanto e maior surpresa viu o imprevisto. O coro de gatos a cantar o Kyrie, do Requiem d-moll KV 626 de Wolfgang Amadeus Mozart. Um estrondo, em versão miau!

O director soltou um miau de espanto e beliscou-se no braço para ver se estava bem acordado. De boca aberta continuou a ouvir o coro a cantar o Confutatis, seguindo-se a Lacrimosa,  Sanctus e Agnus Dei.

- Soberbo, sublime! Bravo! – exclamou o director em êxtase, batendo sonoras palmas.

Cumprimentou a maestrina e não mais parava de lhe tecer elogios pelo magnífico trabalho que estava à mostra.

A maestrina, orgulhosa, de bigodes espetados, com o rabo todo no ar, lambeu a mão do director em jeito de agradecimento e disse:

- Senhor director, tenho um pedido a fazer-lhe. Quero dar um concerto na sala Guilhermina Suggia, com a orquestra residente.

- Muito bem, disse o director. Vou reunir com o meu grupo de trabalho e depois darei a minha resposta.

A decisão estava longe de ser unânime. As mudanças são sempre difíceis e a orquestra não estava de acordo, recusou mesmo a proposta. Nos corredores, os músicos comentavam à boca cheia que o Sr. Director tinha endoidado.

O director não hesitou e ofereceu a sala mais pequena para o concerto bem como uma boa gravação da parte instrumental da obra. Organizou o concerto inaugural, convidou e imprensa e um grupo de amigos.

Bom, o sucesso estava garantido a avaliar pela primeira impressão. A imprensa fartou-se de dizer mil maravilhas e os críticos de arte também. Daí até ao sucesso foi um miau.

A sala Guilhermina Suggia ficava esgotada todas as noites e o público não se cansava de bater palmas no fim de tão grandioso espectáculo. Parte do Requiem de Mozart, ali, magnificamente  interpretado pela gataria. Um assombro! Um espanto!

Se a Casa da Música já era famosa pelo seu arrojado edifício e conhecida pela diversidade e qualidade dos seus programas ficou ainda mais famosa mundialmente. Eram organizadas excursões no estrangeiro para trazer  espectadores a Portugal, que também ficou famoso pelo coro dos gatos.

Estes, decidiram em reunião de cave, que de todo o dinheiro apurado, que não era pouco,  5% era para criar uma fundação de ajuda a gatos de rua gerida por eles mesmos.  A grande fatia do bolo, 95%, era entregue generosamente ao governo para nos livrar desta sarnenta e tinhosa crise.