Apressadinha, lá ia a tartaruga, passeio fora, em direcção à paragem. As duas amigas que iam apanhar o Metro para Campanhã, seguiam, espantadas, a misteriosa viagem do bicho da carapaça. Perante o risco mais do que evidente da tartaruga ser atropelada, Manuela foi obrigada a alterar-lhe o destino. A tartaruga, contrariada, esperneava a quatro patas, mas quando sentiu o toque da água, entrou no lago que nem um peixinho. Sem mais percalços apanharam o metro e na Casa da Música, entrou, sem música, a amiga Raquel, entendida em artes e manhas. E lá foram as três, sem mais desvios para o Centro de Artes de Ovar.
Os velhos do banco do jardim não faziam a mais pálida ideia de onde ficava o dito Centro de Artes. O jovem casal que se beijava na esquina, também estava a léguas de saber onde era o nosso destino. Mas, embora a maior parte dos residentes não soubessem da sua existência, o nosso sentido de orientação e a subtil sinalética acabaram por nos conduzir, sãs e salvas ao Centro de Artes, onde deparámos com uma magnífica árvore, que, para além da sua generosa sombra, ainda moldou o seu tronco, oferecendo-o como assento para descanso. Bendita árvore, que pela sua beleza, disfarçava a ousadia do edifício.
Fizemos a visita, no último dia da exposição da Colecção Particular de José Lima, anos 60/70, e aproveitámos para conversar na sala contígua, cheia de sofás pretos alinhados em linha recta, disposição pouco cómoda para falar em grupo, o que não fazia diferença nenhuma, porque não estava lá mais ninguém para conversar.
Acabado o prazo da exposição, a tarefa seguinte era a desmontagem da mesma. A Raquel, que organizou a exposição, também esteve presente para, com todo o cuidado, embalar as preciosas obras nas respectivas embalagens, o que era uma grande preocupação.
Estavam já os quadros todos empacotados e prontos para serem levados para o local do costume quando a Raquel começou a ouvir uns ruídos estranhos. O seu jovem e apurado ouvido, conseguia captar aqueles sons esquisitos que saiam das caixas. Pareciam gemidos, ou suspiros ou um choro muito brando, nada de muito definido, tudo muito abafado. Muito intrigada ficou a Raquel!
A viagem até ao depósito da colecção correu muito bem e os quadros foram pendurados nos sítios do costume na casa do coleccionador.
Passados uns dias, a Raquel recebeu uma chamada telefónica para ir a casa do coleccionador, onde a sua presença era muito importante, pois não dava para falar pelo telefone, dada a delicada natureza do assunto. Intrigada, lá foi a Raquel a casa do José Lima, que o encontrou muito apreensivo e pensativo, após o regresso a casa, da sua colecção. Embaraçado e confuso, confidenciou as suas preocupações e, na sua opinião, só tinha uma hipótese, era convencer a Raquel a ficar a residir em sua casa uns dias, quem sabe, até meses, para desvendar o que se estava a passar com parte da sua colecção, ou melhor, apenas com os quadros que pela primeira vez tinham saído das paredes da sua cave e foram expostos ao público no Centro de Artes.
Raquel aceitou o desafio sem saber bem o que havia de fazer. Ela sabia que tudo tinha de passar pela observação, metódica e incisiva. Sem referências académicas sobre o assunto, sem qualquer ideia, só lhe restava uma solução, a observação dos factos. E assim aconteceu. Raquel descia à cave várias vezes por dia, a horas desencontradas. Dorminhoca como ela era, para mal dos seus pecados, repetia a mesma rotina durante a noite. Trabalho duro de roer, mas bem pago. Conhecendo ela tão bem as obras, estava realmente atónita. Passeava pela sala e via mutações nos quadros. Esta descrição já lhe tinha sido feita pelo coleccionador, pelo que ela só estava a confirmar o que lhe tinha sido dito.
Verificou que o quadro de Arpad Szenes , Le Fleuve, le soir, 1965 mudava de cor conforme o dia. Se fazia sol, o rio ficava mais dourado, se chovia, o rio ficava mais verde escuro, se o sol estava encoberto, o rio ficava mais cinzento. Estas mutações foram devidamente anotadas.
Em simultâneo, o quadro de René Bertholo, Le Revê d’un certain paisage montagnause, 1974, não mudava de cor, mas algo de mais estranho se passava. Nas árvores que estavam todas alinhadas como num pomar, começaram a nascer uns frutos muito vermelhos e perfumados. Ao fim da tarde, o perfume a fruta madura acentuava-se por toda a sala.
No crepúsculo era a vez da obra da Lourdes Castro se manifestar. Sem título, 1966, Plexiglas recortado, dançava até ao sol nascer. Uma dança suave que se parecia com uma valsa.
Depois da meia-noite Sem Título, 1972 de António Palolo, transfigurava-se. No arco-íris que envolvia a pirâmide, aparecia Nefertiti, a desfilar lentamente o seu maravilhoso traje, coberto de pedras preciosas.
No Mário Cesariny, Sem Título, 1973 , aparecia o seu gato, depois da meia-noite.
No Manuel Cargaleiro, En Souvenir de L’ Evénement, 1966, as ondulações abstractas transformavam-se no corpo roliço e sensual de uma mulher deitada, depois da meia-noite.
De tudo isto a Raquel fez registo escrito e reuniu com o coleccionador. Leram juntos o relatório e as surpresas foram mais que muitas. Nunca na História da Arte se tinha ouvido falar em tal magia de quadros interactivos, mutantes ou qualquer outro nome científico que se lhes possa ser atribuído. Nunca a Raquel tinha ouvido falar de tais fenómenos, nem quando andou a estudar os insondáveis mistérios da arte pré-columbiana.
Orgulhoso estava o José Lima, que, sem saber, tinha uma colecção especial e única no planeta e por isso, pagaria para saber qual a razão de tão inexplicável fenómeno. Raquel, sem saber mais o que fazer, aceita prosseguir as investigações. Dias depois, teve de ir de urgência a casa, para levar o gato Boni ao veterinário e, em jeito de despedida, passou mais uma vez pela colecção e deu um grito de espanto, quando reparou que na parede do quadro do António Costa Pinheiro, La Fenetre Espace Poetique de Fernando Pessoa et la mienne (avec son Stylographe), 1977, estava escrita, pela caneta de Fernando Pessoa, a tinta permanente, a MENSAGEM:
Estamos muito felizes por ter saído de casa e ter estado na exposição.
Gostamos de termos sido vistos pelas pessoas.
Como prova da nossa felicidade decidimos manifestar o nosso contentamento.
Gostamos muito de termos sido vistos pelas pessoas.
Gostamos dos seus olhares enigmáticos, pasmados, curiosos, inquisidores, perplexos, imaginativos.
Gostamos dos risos de espanto e dos sorrisos de ignorância.
Gostamos da imaginação interpretativa da obra e das tentativas de entrar na mente do artista no acto da criação.
Gostamos de ter sido olhados, criticados, comentados e de sentir todas as emoções manifestadas pelos humanos na nossa presença.
Gostamos muitíssimo de termos sido vistos pelas pessoas.
M, 26 de Agosto de 2011