sexta-feira, 26 de agosto de 2011

COLECÇÃO PARTICULAR


Apressadinha, lá ia a tartaruga, passeio fora, em direcção à paragem. As duas amigas que iam apanhar o Metro para Campanhã, seguiam, espantadas,   a misteriosa viagem do bicho da carapaça. Perante o  risco mais do que evidente da tartaruga ser atropelada,   Manuela foi obrigada a alterar-lhe o destino. A tartaruga, contrariada, esperneava a quatro patas, mas quando sentiu o toque da água, entrou no lago que nem um peixinho. Sem mais percalços apanharam o metro e na Casa da Música, entrou, sem música, a amiga Raquel, entendida em artes e manhas. E lá foram as três, sem mais desvios para o Centro de Artes de Ovar.

Os velhos do banco do jardim não faziam a mais pálida ideia de onde  ficava o dito Centro de Artes. O jovem casal que se beijava na esquina, também estava a léguas de saber onde era o nosso destino. Mas, embora a maior parte dos residentes não soubessem da sua existência, o nosso sentido de orientação e a subtil sinalética acabaram por nos conduzir, sãs e salvas ao Centro de Artes, onde deparámos com uma magnífica árvore, que, para além da sua generosa sombra, ainda moldou o seu tronco, oferecendo-o como assento para descanso. Bendita árvore, que pela sua beleza, disfarçava a ousadia do edifício.

Fizemos a visita, no último dia da exposição da Colecção Particular de José Lima, anos 60/70, e aproveitámos para conversar na sala contígua, cheia de sofás pretos alinhados em linha recta, disposição pouco cómoda para falar em grupo, o que não fazia diferença nenhuma, porque não estava lá mais ninguém para conversar.

Acabado o prazo da exposição, a tarefa seguinte era a desmontagem da mesma. A Raquel,  que organizou a exposição, também esteve presente para, com todo o cuidado, embalar as preciosas obras nas respectivas embalagens, o que era uma grande preocupação.

Estavam já os quadros todos empacotados e prontos para serem levados para o local do costume quando a Raquel começou a ouvir uns ruídos estranhos.  O seu jovem e apurado ouvido, conseguia captar aqueles sons esquisitos que saiam das caixas. Pareciam gemidos, ou suspiros ou um choro muito brando, nada de muito definido, tudo muito abafado. Muito intrigada ficou a Raquel!

A viagem até ao depósito da colecção correu muito bem e os quadros foram pendurados nos sítios do costume na casa do coleccionador.

Passados uns dias, a Raquel recebeu uma chamada telefónica para ir a casa do coleccionador, onde a sua presença era muito importante,  pois não dava para falar pelo telefone, dada a delicada natureza do assunto. Intrigada, lá foi a Raquel a casa do José Lima, que o encontrou muito apreensivo e pensativo, após o regresso a casa, da sua colecção.  Embaraçado e confuso, confidenciou as suas preocupações e, na sua opinião, só tinha uma hipótese, era convencer a Raquel a ficar a residir em sua casa uns dias, quem sabe, até meses,  para desvendar o que se estava a passar com parte da sua colecção, ou melhor, apenas com  os quadros que pela primeira vez tinham saído das paredes da sua cave e foram expostos ao público no Centro de Artes.

Raquel aceitou o desafio sem saber bem o que havia de fazer. Ela sabia que tudo tinha de passar pela observação, metódica e incisiva. Sem referências académicas sobre o assunto, sem qualquer ideia, só lhe restava uma solução, a observação dos factos. E assim aconteceu. Raquel descia à cave várias vezes por dia, a horas desencontradas. Dorminhoca como ela era, para mal dos seus pecados, repetia a mesma rotina durante a noite. Trabalho duro de roer, mas bem pago. Conhecendo ela tão bem as obras,  estava realmente atónita. Passeava pela sala e via mutações nos quadros. Esta descrição já lhe tinha sido feita pelo coleccionador, pelo que ela só estava a confirmar o que lhe tinha sido dito.

Verificou que o quadro de Arpad Szenes , Le Fleuve, le soir, 1965 mudava de cor conforme o dia. Se fazia sol, o rio ficava mais dourado, se chovia, o rio ficava mais verde escuro, se o sol estava encoberto, o rio ficava mais cinzento. Estas mutações foram devidamente anotadas.

Em simultâneo,  o quadro de René Bertholo, Le Revê d’un certain paisage montagnause, 1974,  não mudava de cor, mas algo de mais estranho se passava. Nas árvores que estavam todas alinhadas como num pomar, começaram a nascer uns frutos muito vermelhos e perfumados. Ao fim da tarde, o perfume a fruta madura acentuava-se por toda a sala.

No crepúsculo era a vez da obra da Lourdes Castro se manifestar. Sem título, 1966,  Plexiglas recortado,  dançava até ao sol nascer. Uma dança suave que se parecia com uma valsa.

Depois da meia-noite Sem Título, 1972  de António Palolo, transfigurava-se. No arco-íris que envolvia a pirâmide, aparecia  Nefertiti, a desfilar lentamente o seu maravilhoso traje, coberto de pedras preciosas.

No Mário Cesariny, Sem Título, 1973 , aparecia o seu gato, depois da meia-noite.

No Manuel Cargaleiro, En Souvenir de L’ Evénement, 1966, as ondulações abstractas transformavam-se no corpo roliço e sensual de uma mulher deitada, depois da meia-noite.

De tudo isto a Raquel fez registo escrito e reuniu com o coleccionador. Leram juntos o relatório e as surpresas foram mais que muitas. Nunca na História da Arte se tinha ouvido falar em tal magia de quadros interactivos, mutantes ou qualquer outro nome científico que se lhes possa ser atribuído. Nunca a Raquel tinha ouvido falar de tais fenómenos, nem quando andou a estudar  os insondáveis mistérios da arte pré-columbiana.

Orgulhoso estava o José Lima, que, sem saber, tinha uma colecção especial e única no planeta e por isso,  pagaria para saber qual a razão de tão inexplicável fenómeno. Raquel, sem saber mais o que fazer,  aceita prosseguir as investigações. Dias depois, teve de ir de urgência a casa, para levar o gato Boni ao veterinário e, em jeito de despedida, passou mais uma vez pela colecção e deu um grito de espanto, quando reparou que na parede do quadro do António Costa Pinheiro, La Fenetre Espace Poetique de Fernando Pessoa et la mienne (avec son Stylographe), 1977, estava escrita, pela caneta de Fernando Pessoa, a tinta permanente,  a  MENSAGEM:




Estamos muito felizes por ter saído de casa e ter estado na exposição.

Gostamos de termos sido vistos pelas pessoas.

Como prova da nossa felicidade decidimos manifestar o nosso contentamento.

Gostamos muito de termos sido vistos pelas pessoas.

Gostamos dos seus olhares enigmáticos, pasmados, curiosos, inquisidores, perplexos, imaginativos.

Gostamos dos risos de espanto e dos sorrisos de ignorância.

Gostamos da imaginação interpretativa da obra e das tentativas de entrar na mente do artista no acto da criação.

Gostamos de ter sido olhados, criticados, comentados e de sentir todas as emoções manifestadas pelos humanos na nossa presença.

Gostamos muitíssimo de termos sido vistos pelas pessoas.







M,  26 de Agosto de 2011






terça-feira, 16 de agosto de 2011

Encontro imediato de Primeiro Grau



COORDENADAS GPS:    1437º 395’ 13’’
                              (ALDEIA DA LUZ, QUINTAL DO CASAL SILVA)
HORA LOCAL:            02:00, am
ESTAÇÃO DO ANO:     PRIMAVERA
FASE DA LUA:            LUA CHEIA
Nº DE HABITANTES:    57

O silêncio da noite foi interrompido pelo súbito ladrar da Ladina, que corria que nem uma louca, de um lado para o outro do quintal. No quarto, acordavam, sobressaltados, a Maria Rosa e o Justino.

- Justino! Ai que lá vão as nossas cabras e as galinhas! Levanta-te depressa e vamos ver!

Justino sentou-se na beira da cama, estremunhado, e resmungou:

- Tem calma mulher! A Ladina dá conta do recado!

- Anda lá homem, corre! – insistia a mulher aflita.

Cá fora, o cenário não podia ser mais surpreendente.  Indescritível. No meio do quintal estava um objecto brilhante, espantosamente colorido e em forma de chapéu de senhora virado ao contrário. A cara da Maria Rosa não podia ser mais bizarra. Franzia as sobrancelhas, piscava os olhos ao mesmo tempo que punha a mão em cima dos olhos para os proteger da intensa luz, mas nada disto a ajudava a entender o que estava plantado no seu quintal.

- Tino, ó Tino, o que é isto? Não dizes nada? – A mulher, agarrada ao braço do marido,  tremia que nem varas verdes. O marido, com a maior das calmas respondeu:

- Ó mulher, pelo que já vi na televisão, isto é parecido com um OVNI. Vem para dentro, que eu estou nu e gelado de frio.

A Ladina, ladrando sem cessar, aproximou-se dos donos cada vez mais agitada, correndo para a porta da cozinha.

Entraram em casa, onde por breves instantes se sentiram seguros, mas, de repente, ouviram um barulho estranho vindo do fundo do corredor e  o Tino, nas calmas, dirigiu-se para lá seguido pela Rosa, que colada a ele o seguia cheia de medo. Ainda não tinham dado dois passos, o Tino deu meia volta, rodeou o corpo da mulher, tapou-lhe a boca e  segredou-lhe ao ouvido:

- Não te assustes, é só um ET!

- É quem? - Perguntou a Rosa muito aflita.

- Valha-me Nossa Senhora! Credo, cruz, canhoto!

- Estamos a ser visitados por extraterrestres! – Disse o Tino deslumbrado.

- Estes quê? Visitados? Mas eu não convidei ninguém para a minha casa! A estas horas da noite?  Tu estás a ver bem?

- Até estou, Rosa. Tu é que não! Vai buscar os óculos, que estão mais vezes pousados na mesa de cabeceira do que no teu nariz.

Correndo até ao quarto, a Rosinha apanhou as lunetas, colocou-as à pressa e voltou para a cozinha.

- Ai Jesus, Virgem Maria! Mas que coisa tão estranha! Isto é um homem vestido de quê?

Sem emitir nenhum som, o ET aproximou-se da porta, ligou o mini ecrã incorporado no fato e começou a filmar o interior do compartimento, rodando num ângulo de 360 graus.

O casal Silva parece que tinha tomado uma anestesia e apesar do insólito fenómeno, começou a ficar mais tranquilo, bem como a Ladina que os tinha seguido até ao interior da casa.

Mesmo assim, a Rosa não parava de dar voltas ao miolo. No seu entender, deviam ser os novos bombeiros que vinham apagar os fogos de verão, com os fatos prateados e fechadinhos dos pés à cabeça. Isto agora é cada modernice! O novo presidente da junta está a trabalhar bem, pensava a Rosa com os seus botões. Mas pelo sim, pelo não, a Rosa achou que era melhor jogar pelo seguro e disse para o marido:

- Ó Tino, é melhor pegares na bicicleta e ires chamar o Padre!

- O padre? Para quê? – perguntou o marido

- Pode ser que eles se entendam com a linguagem do céu. Eu vou entretendo este não sei o quê com uma sopinha da que sobrou do nosso jantar. Pode ser que ele tenha fome.

- Ó Rosa, tu não vês que ele não tem boca? Como é que ele vai comer?

- Mas tem olhos,  que já lhos vi mexer dentro daquele capacete de vidro.

De repente, entram mais dois ET’s na cozinha. Aí,  o casal Silva teve um baque. Não se entendiam com um e agora eram já três.

- Isto está a ficar um caso sério. - Disse o Tino.

Os Et’s entraram em diálogo uns com os outros, mas o casal Silva não captava nada. A cena estava a ficar cada vez mais gagá.

Sem nenhum sinal de hostilidade, os três ET’s saíram com tal leveza, que a Maria Rosa  jurava que eles andavam sem tocar o chão. A nave veio ao encontro deles e, num ápice, recolheu-os e pôs-se em fuga.

A Maria Rosa  não parava de puxar pela cabeça para encontrar uma explicação para tão insólito fenómeno e bombardeava o Tino com perguntas.

- Cá para mim, tu não pagaste os impostos e eles vinham buscar a televisão e o frigorífico, mas arrependeram-se.

- Rosa, pára de me fazer perguntas que eu  pouco mais sei que tu. Lá vou lendo umas coisas aqui e vendo outras acolá mas, na verdade, estou muito baralhado. Vamos dormir e esquecer o assunto que é o melhor. Afinal nada aconteceu. Não levaram nada, não fizeram perguntas e não disseram nada. Está tudo na mesma.

- Isso é o que vamos ver! O sono já se foi embora e já que estou acordada vou passar aquele monte de roupa a ferro.

A vida do casal Silva entrou na rotina e o assunto foi naturalmente esquecido.

Passada uma semana e à mesma hora, um clarão entra pela casa dentro e acordou o casal e fez a Ladina ladrar. O Tino e a Rosa estavam pela segunda vez a ter um encontro imediato do lº grau, sem saberem o que haviam de fazer. Desta vez, parece que estavam mais perdidos do que da primeira. Entraram em estado de choque e desmaiaram os dois ao mesmo tempo.

Um dos ET’s pousou a mão na testa da Rosa e ela acordou de imediato. Repetiu o gesto com o Tino e este também acordou. Os ET’s de seguida foram para o exterior da casa e começaram a cavar um buraco no chão, ao lado do sítio onde se encontrava a nave espacial. Cheios de curiosidade, o casal Silva caminhou para o local mas, dois passos à frente uma barreira invisível deteve-os. Só lhes era permitido ver a cena de longe. Aberto o buraco, imediatamente se espalhou uma luz branca, tão intensa e forte que os cegou momentaneamente.

De repente, acordaram os dois ensopados em suor, muito morenos e belos, rejuvenescidos trinta anos. 

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Arritmia

O meu coração sofre de arritmia. O pobre, não vê a luz do dia, a não ser pelos meus olhos. Mas apesar de ser bombardeado com o vermelho, só sente tudo preto.
Vou ao médico e pergunto-lhe:
- Senhor doutor, há alguma possibilidade de fugir a esta arritmia?
O doutor respondeu-me:
- Minha senhora, vou-lhe dar estes comprimidos para curar o seu coração, mas tenha cuidado, tem de seguir as instruções tal e qual. os pode tomar às escuras para não lhes deixar fugir a luz.

M, 10 de Agosto, 2011

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

O mensageiro

Nove horas e meia da manhã. Acabou o sono da Ana.Toca a levantar e entrar no mundo das rotinas. Pequeno-almoço, de seguida o banho, vestir e ver o e-mail. Entrou na sala de estar, ligou o computador e a música. A Ana não vivia sem música. A primeira actividade que fazia no seu dia a dia era abrir a caixa do correio electrónico e ficar a ver cada mensagem com muito cuidado, sempre na expectativa de ser chamada para uma entrevista  de emprego.

Nada de emprego, para variar. No meio de tanto lixo que recebia de amigos, estranhos e publicidade, estava uma mensagem enigmática que lhe chamou a atenção e arriscou abri-la para ver o conteúdo. A mensagem era a seguinte: «Hoje vais receber em tua casa uma visita muito importante, não deixes de a atender». A Ana ficou a matutar em tão lacónica informação. Será que está aqui a solução? Será uma oportunidade de trabalho? Coisa estranha! Ficou a pensar no assunto a manhã toda e falava sozinha:
- Um estranho?! Receber um estranho na minha casa? Isso é que era bom! Mas, pensando bem, não preciso de o deixar entrar, posso recebê-lo no portão.

A mensagem não lhe saía da cabeça e lá foi a Ana preparar o seu almoço. Uma salada de verão e fruta. Estava a mesa posta e a Ana a sentar-se à mesa quando tocou a campainha. Por precaução, a Ana foi ver à janela quem era. No portão estava um rapaz novo e bem vestido que lhe mostrava uma encomenda e fazia sinal para lha entregar.
A Ana lembrou-se imediatamente do e-mail e cheia de curiosidade, mas ainda com muito receio, foi ao portão receber o rapaz. Reparou bem na sua roupa, mas não identificou nenhum uniforme que o ligasse a alguma empresa. O rapaz muito simpático disse-lhe que a encomenda era para ela e, sem mais rodeios, perguntou-lhe se podia almoçar com ela pois se assim não fosse não comeria naquele dia. A Ana ficou hipnotizada pela voz do mensageiro e subitamente esquecida de todos os cuidados de segurança, convidou-o a entrar e repartiram a refeição.
Observando-se mutuamente, comeram em silêncio, cada um à espera da deixa do outro. Subitamente o rapaz começou a falar da encomenda. E disse-lhe que dentro daquela caixa vinha um livro. E que só depois dele sair é que ela podia abrir a caixa. E que  teria de ler o livro nesse mesmo dia até à meia noite. E que, se assim não fosse, o livro, evaporar-se-ia. Dito isto, o mensageiro levantou-se, encaminhou-se com passos largos para a porta e saiu.

Ana veio ao portão e seguiu o rapaz com o olhar até ele desaparecer completamente da sua linha de horizonte. Entrou em casa lentamente, perdida nos seus pensamentos e embrenhada em sentimentos contraditórios. Sentou-se no sofá, reclinou-se, de olhos postos na caixa colocada em cima da mesa da sala de estar e assim esteve durante muito tempo.

De repente, como se impulsionada por uma energia estranha, a  Ana, num relâmpago,  abriu a caixa. Tirou o livro, que não tinha nenhuma imagem na capa, isto é, era completamente branco. Abriu-o e na contra-capa dizia:

LIVRO DOS AROMAS

- Que fantochada é esta? Será que vou perder tempo com isto?

Ana fez um gesto de quem ia atirar o livro para longe, mas hesitou, porque sentia cada vez mais curiosidade. Decidiu passar  à página seguinte de onde se soltou um suave aroma. Foi envolvida dos pés à cabeça, pelo misterioso perfume. Folheou outra página e já com todos os sentidos alerta, sentiu o aroma da alfazema. Cada vez mais perplexa, fixou a folha e sentiu um frio pela espinha acima, quando, lentamente, começou a aparecer um poema na página branca.  Compulsivamente, avançou outra folha e desta vez sentiu o cheiro de chocolate quente e logo de seguida apareceu na folha branca, a receita de um exótico bolo de chocolate. Passou mais uma folha e libertou-se o cheiro fresco do alecrim e de seguida apareceu na folha branca  um alegre texto sobre os poderes estimulantes desta planta.

A Ana estava deslumbrada com este livro mágico e achou que valia a pena levá-lo a sério até ao fim. Fascinada, completamente absorta, abriu a quarta folha  e nenhum aroma se libertou,  só apareceu uma pequena frase que dizia:
«Daqui para a frente és tu que tens de pensar nos aromas que queres sentir.»
Espicaçada pelo desafio, Ana estava a achar o jogo muito divertido e enquanto virava a página pensou no cheiro do café e logo exalou da folha branca o forte aroma do café arábica acabado de moer que se espalhou pela sala. E,  como ela esperava, apareceu na folha branca a receita de um refrescante gelado de café.
Completamente seduzida, imediatamente  pensou no perfume das rosas de Alexandria e, ao virar a página, floresceu na folha branca  um romântico poema de amor.

Vários foram os aromas escolhidos pela Ana e, na folha em branco, sempre aparecia um pequenino conto, um delicado poema ou uma deliciosa receita.

A Ana já estava a ficar sem imaginação para evocar mais cheiros, fechou o livro e foi para a net enviar mais CVs para ver se arranjava emprego, porque não era de aromas que ia encher a barriga.

Chegou a hora do jantar e a Ana levou o livro para a cozinha com a intenção de o continuar a ler enquanto preparava a refeição. Nessa noite decidiu comer peixe grelhado. Enquanto o peixe grelhava, a Ana foi buscar o livro que tinha pousado em cima da mesa mas, sem saber como, o livro tinha desaparecido. Intrigada, percorreu todo  o espaço com o olhar e debaixo da mesa,  lá estava o seu bichano, todo consolado, a lamber os bigodes, com o ar de quem tinha comido a refeição mais saborosa deste mundo.

 M, 5 de Agosto, 2011