quarta-feira, 6 de julho de 2011

Joaquim e Joaquina


Tinha saído para o meu passeio após o almoço e deparo com a cena mais caricata de sempre. Ela, furiosa, aos berros em plena rua, a ralhar com o seu companheiro:
- Vai, vai, tens de ir.
Ele, todo encolhido, não sabia onde se meter. Nem fugia, nem respondia.
Cada vez mais furiosa perante tanta indiferença, desatou a bater-lhe e, continuando aos berros:
- Vai, vai, tens de ir, não podes ficar.
Ele, cada vez mais cabisbaixo caminhava lentamente como se nada lhe dissesse respeito.
- Olha, olha para aquilo!!!
- A mulher não está boa da cabeça. Onde já se viu? A tradição é o homem a bater na mulher. Oh Bina, anda cá ver isto. Oh mulher, aquela galdéria a bater no marido. Será que é marido?
- Não importa. Deve ter bebido forte e feio, para fazer um teatro destes. Coitado do homem, um pobre diabo. O mundo assim nunca mais fica direito.
- Deixe lá minha mãe. Eles também precisam de ser ensinados. Ela deve estar a fazer uma boa acção. Os homens por vezes parecem crianças e precisam de umas boas surras.
- Oh filha, Deus me livre se eu batia assim no falecido. Ia de certeza parar ao hospital.
De repente a janela fechou-se. Na rua, a cena já tinha acalmado. Ela começou a subir em direcção à rua escura. Ele continuou no mesmo sentido descendente em direcção ao rio. Curiosa como sou e numa tentativa de ajudar o pobre infeliz segui as suas pisadas e, mais à frente, acertei o passo com o dele.
- Boa tarde, disse eu.               
Ele não respondeu mas vi na sua cara um leve sorriso.
- Desculpe, posso ajudar?
- Em quê minha senhora? Não há quem a convença!
- Olhe lá, tenho meia hora até voltar ao trabalho e gostaria de saber se precisa de alguma coisa.
- Não, não, minha senhora, não preciso de nada. Acho que já nem o médico me pode ajudar.
- Foi estranha aquela cena de há pouco, disse eu.
- Pois é, pois é, mas mais estranho era, se eu lhe contasse a razão daquela zanga.
- Oh homem desabafe. Falar faz bem. Desembuche. Olhe que ficar calado faz muito mal aos nervos.
- Tem razão, senhora.
O homem parou de repente, pestanejou e levou a mão direita à boca e começou a roer a unha do polegar. Ficou assim um momento,  depois olhou em frente e estremeceu com o chiar das rodas da carroça que passava naquele momento. Pareceu despertar para a realidade e as palavras saíram-lhe de jorro:
- Não é que aquela maluca me obriga todos os dias a fazer a mesma coisa? Depois de almoçarmos corre comigo de casa. Sabe,  moramos na rua escura, numa casinha de rés-do-chão muito pobrezinha onde moraram também os meus pais  e por lá fiquei. Como não tinha ninguém para cozinhar, lavar a roupa e tratar da casa, isto porque enviuvei cedo, juntei-me com a Joaquina. No início, estava tudo às mil maravilhas, mas depois de ela saber que eu não lhe podia dar filhos, por causa de uma doença que apanhei no ultramar, ela nunca mais me deu descanso. Imagine a senhora, que todos os dias, mas todos os dias, tenho de descer até ao rio, atravessar para a outra margem e logo, logo ali, existe um terreno baldio onde, por desconto dos meus pecados, sou obrigado a um trabalho muito estranho.
Neste ponto, o homem parou de falar, franziu o sobrolho e olhou-me com um ar muito infeliz e disse baixinho:
- Não sei se diga...
- Diga lá homem. Já agora, como se chama?
- Chamo-me Joaquim Faneca. Sabe, o meu pai era pescador e a minha mãe peixeira.
- Sim, sim Joaquim, mas diga lá o que é que tem de fazer no baldio.
- Bem, é estranho mas é a pura verdade. Não é que todos os dias eu tenho de encher seis garrafões com sol para os levar para casa e guardá-los na cozinha debaixo da mesa, debaixo da cama, pendurados no tecto, enfim onde houver um espacinho.
- Oh senhor Joaquim, diga lá, encher garrafões com sol?
- Sim, minha senhora. Nem mais nem menos! Cada garrafão demora meia hora a encher. Depois fecho muito bem a rolha e quando tenho seis começo a fazer a viagem até casa. Em cada viagem levo 2 garrafões o que dá para 3 caminhadas.
- Oh amigo Joaquim e qual é a razão dessa tarefa?
- Isso queria eu saber minha senhora. O que a Joaquina diz, é que com este sol consegue aquecer a casa. Chega o frio e lá vai ela buscar um garrafão. Abre a rolha e com o maior ar de satisfação deixa sair o sol que lhe aquece a casa. E mais. Ela até diz que cada garrafão dá para uma hora de aquecimento. Portanto seis garrafões por dia dão para o tempo em que está em casa depois de chegar da banca do peixe, até se deitar.
- É curioso. Agora explique-me uma coisa. Isso resulta mesmo?
- Não sei senhora. Quando ela chega a casa no inverno eu já não tenho frio. Sabe como é, sempre paro na tasca do Celestino e bebo um copinho.
- Estou cá a pensar. Esse trabalho é para o verão. E nos dias de inverno em que não há sol, sempre pode descansar e fazer o que lhe apetece.
- Qual quê,  minha senhora. Não, não! Nesses dias encho os garrafões com chuva e nevoeiro e vou deitá-los ao rio.
- Ah, muito bem senhor Joaquim.
 Educado e bom homem este Joaquim.
M,  4 de Julho 2011

4 comentários:

  1. Ah ah ah
    Deliciosa esta pequena história. Adorei!
    Já partilhei com os meus amigos a existência deste blog.
    Mande-me aí um garrafão de sol, por favor.
    Beijo. mj

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  2. Excelente ideia, a do garrafão de sol!
    Que jeito que dava no Inverno...
    Parabéns!

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  3. Olá Majo.

    Mais sol tenho eu na minha vida e graças à
    minha amiga.
    Eternamente grata.
    M.

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  4. Olá Lias.
    Mais um obrigada por ler os meus pequenos contos.
    Fique atenta que estão mais a chegar.
    M.

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