A Ermelinda viúva e reformada, era mais uma das figuras errantes que vagueava pela cidade. Nos últimos tempos, a Ermelinda andava meia sonâmbula pelas ruas. Não dormia bem e os sonhos estavam a minar a sua frágil existência. Tinha uns sonhos persistentes que a deixavam muito angustiada e aflita. Sonhava que as paredes do quarto se começavam a mexer lentamente e se aproximavam uma da outra. Sentia-se toda apertadinha até que o seu quarto virava folha de papel fotográfico e ela toda espalmada numa fotografia. Passados uns minutos, as paredes voltavam ao sítio mas ela ficava caída no chão como folha de árvore no Outono. Outras noites, sonhava que o tecto se aproximava do chão e lá ficava ela como aquelas bonecas antigas impressas em papel a quem se podiam mudar os vestidos.
De tanto sonhar, a Ermelinda andava cada vez mais baralhada das ideias. Ficou convencida que tinha ganho uma peçonhenta alergia às paredes e tectos, porque quando entrava em casa sentia a cabeça à roda, o corpo todo cheio de comichão e como se isso não chegasse, ainda se sentia enjoada. Sozinha em casa, a vida para ela não fazia sentido. Sempre gostou do ar livre, do sol e de muita companhia, por isso a casa estava a tornar-se uma autêntica prisão. Decidiu experimentar passar a dormir na rua. Não era muito confortável mas deixou de sonhar com paredes e tectos movediços. Acordava e dirigia-se a casa para tomar um bom banho quente e mudar de roupa. Saía logo e lá ia ela peregrinar para as movimentadas ruas da baixa onde fazia todas as suas refeições.
Na hora do almoço entrou no restaurante do costume e disse ao empregado:
- Sirva-me depressa porque anda a Torre dos Clérigos atrás de mim.
O empregado que já a conhecia brincou com ela e disse-lhe:
- D. Ermelinda amanhã pode trazer a Torre dos Clérigos para almoçar, que o chefe arranja um prato especial aí com uns dois metros de altura. A Ermelinda almoçou e lá foi ela ver as montras que já tinha visto no dia anterior. Entrou nalgumas lojas de comércio mais antigo onde tinha amigas com quem conversava e a quem se queixou da terrível perseguição de que era alvo e dizia:
- Segunda-feira tenho uma entrevista marcada para falar com o presidente da Câmara, para mandar prender a Torre dos Clérigos. Já estou farta daquela torre tão alta atrás de mim, todo o dia, para qualquer lado que eu vá. Se fosse um bispo atrás de mim ainda vá que não vá.
Segunda-feira lá foi a Ermelinda para a câmara e cruzou-se no passeio com um cavalheiro que lhe dirigiu a palavra. A Ermelinda olhou fixamente o homem mas nenhuma lembrança lhe vinha àquela frágil cabeça e secamente lhe disse que não se lembrava de quem ele era. Ele, com um grande sorriso nos lábios disse-lhe que era o Pedro e que tinha andado com ela na faculdade. Disse-lhe ainda que estava um bocadinho mais gordo e diferente, mas se ela fizesse um esforço iria lembrar-se. A Ermelinda tinha tido uma paixão por ele e essas coisas nunca se esquecem.
A Ermelinda um pouco atordoada, fez um grande esforço de memória e consegui lembrar-se do charmoso Pedro que destroçava o coração das jovens meninas.
Confirmou que sempre se lembrava dele e convidou-o para almoçar. Ele confirmou que estava disponível e ficou decidido o almoço para o dia seguinte ao encontro. A conversa não se alongou mais, porque estavam ambos com horas marcadas e despediram-se muito sorridentes e felizes com um abraço.
No dia seguinte a Ermelinda caprichou na sua toilette. Vestiu o fato mais bonito que tinha, perfumou-se e foi ao cabeleireiro.
Quando a viu, o Pedro ficou impressionado com a sua aparência e beleza. Durante o almoço falaram muito porque tinham muito para contar um ao outro depois de tantos anos de silenciosa ausência. No meio da conversa, ele soltava um elogio à sua beleza. Ela, toda vaidosa e sensível ao elogio, agradecia. Mais dois dedos de conversa e mais um reparo à sua beleza, aos seus doces olhos verdes, ao seu sorriso, às suas delicadas mãos com dedos finos e compridos. Falaram das suas vidas, do bom e do mau que lhes tinha acontecido e chegaram à conclusão de que o mundo já não precisava deles, mas eles sentiam que precisavam um do outro. Na despedida ela confessou-lhe um segredo. Disse-lhe que andava uma girafa atrás dela que tinha vindo do Parque Nacional do Seringueti e não a largava.
O Pedro foi para casa a pensar na saúde mental da Ermelinda. O seu coração que andava tão vermelhinho e nas nuvens ficou muito apertadinho. Divorciado, apaixonado e solitário, tinha todos os ingredientes certos para fazer da Ermelinda uma mulher feliz e decidiu que no próximo encontro a convidaria para ir viver com ele.
Para uma ocasião tão importante o Pedro levou o coração cheio de esperança. Sabia que podia contar com o seu charme e o seu alegre modo de estar na vida.
Estava muito calmo e cheio de ternura. Os seus olhos brilhavam de tanto entusiasmo. À volta da sua cabeça sentia uns passarinhos a chilrear e a esvoaçar com lindos ramos de flor de laranjeira. Estava muito comovido naquele momento tão importante da sua vida. A voz tremeu-lhe, tropeçou nas palavras, e quase lhe faltava o ar quando perguntou à Ermelinda se queria ir viver com ele. A Ermelinda disse logo que sim mas tinha uma condição. Ele tinha de a deixar levar a girafa consigo.
O Pedro agarrou-lhe a mão, deu-lhe um beijo cheio de ternura e disse-lhe que sim. Estava ansioso pelo momento da união e percebeu que com tempo, paciência e muito amor a Ermelinda acabaria por ficar bem.
Moram os dois junto à praia e todos os dias de sol caminham à beira mar de mão dada. Continuam muito apaixonados e ela já dorme bem quando o Pedro deixa. Continua a dizer que anda uma pantera negra atrás dela e todos os dias vai ao jardim colocar comida para o felino. O certo, é que a comida desaparece sem ficar uma migalha.
M.
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