terça-feira, 13 de dezembro de 2011

NASCIMENTO DE JESUS SÉCULO XXI

O parto ocorreu às sete horas e sete minutos da manhã. O menino é visto num bercinho muito exótico, feito de um material muito brilhante e que expelia ondas concêntricas de luz, de cores muito suaves, lindas. No espaço envolvente, inúmeras crateras, irregulares, emitiam feixes de luz prateada. José estava muito feliz, porque, desta vez, de comum acordo com Maria, o primogénito tinha nascido longe dos homens.

Aquele vídeo, capturado por um espião satélite já tinha sido visto por milhares de pessoas, em todas as redes sociais. A notícia era bombástica. O jornalista ia entrar em directo, via satélite, mas a luz foi abaixo nesse preciso momento. Quando a luz voltou, o telejornal já estava no fim e informava que o tempo ia piorar, com baixas temperaturas e caída de neve em todo o país.

Nessa noite não se dormiu no planeta terra, na expectativa de que outra mensagem importante viesse do céu, mas o céu não se manifestou e tudo o resto eram especulações.

Chegou o ano novo e parte do planeta terra fez votos de um mundo melhor com mais paz e amor. Os chineses, um pouco atrasados, ou não, também iriam fazer os seus rituais muito peculiares de boas vindas ao novo ano.  

Chegou o dia de reis e o céu voltou a dar notícias. Tudo em tempo real para quem quisesse ver.

O menino Jesus, no seu bercinho foi visitado pelo sheik do petróleo, que lhe foi levar a sua melhor prenda, milhares de barris de ouro negro. Mas na condição de Jesus dar um nó cego nas energias alternativas, porque se assim não fosse, a sua ruína estaria à vista.

De seguida é visitado por um industrial farmacêutico que lhe levou como presente um contentor cheio de medicamentos para todas as doenças conhecidas e desconhecidas, não esquecendo os remédios para a diabetes, que até já têm cura. Ao sair, disse a José que quando precisasse, era só pedir, que para esta família os remédios eram todos grátis.

A terceira visita, foi de um ilustre desconhecido que tinha um cargo muito importante no planeta terra. Era Presidente da Federação Internacional dos Fabricantes de Armamento e Afins (FIFAA). Este presidente levou-lhe  o incenso do século, uma caixa com um pó branco como a neve, que tinha o poder de aniquilar o ser humano. Pediu ao menino para que quando crescesse, não pregasse a paz no mundo, porque se não o número de desempregados aumentaria muito mais.

Tudo isto foi seguido com muito interesse cá no planeta terra, mas os homens ficaram muito decepcionados, porque a família de Jesus não falava nenhuma língua conhecida e, por essa razão, as mensagens e os pedidos para o menino foram escritas em papel, para que depois, José, com a ajuda do computador pudesse descodificá-los.

José e Maria ficaram decepcionados. Os seus planos estavam a ir por água abaixo,  porque  a educação do seu filho passava pela ausência do contacto com tudo o que há de mau à face da terra e apesar de todos os cuidados, afinal, estavam tão perto do fogo.

Jesus foi crescendo no meio dos anjos bons e educado para ensinar os homens a banir o mal da face da terra. Aos dezoito anos estava prevista a sua primeira aparição na terra, mas Jesus disse a Maria e a José que queria ir para um planeta ainda mais longínquo, onde os homens não conseguissem chegar, porque não queria morrer outra vez pregado na cruz.

M.
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sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

O HOMEM INVISÍVEL

O homem invisível chegou a casa, bateu com a porta, sentou-se na mesa da cozinha e deu meia dúzia de murros na parede de tão zangado que estava. Aquela cabra não merece o Rui, pensou ele. Ficou tão incomodado com a cena que esteve vai-não-vai para agarrar no telefone e ligar ao seu amigo. Respirou fundo e rapidamente percebeu que a vingança se serve fria. Concentrou-se no seu próximo objectivo. Dar cabo da vida da Marlene. Essa loira depravada tinha de aprender o que é a fidelidade.

Dirigiu-se à Faculdade de Ciências, ao laboratório do Prof. David Wright que estava a desenvolver um estudo científico sobre o prazer sexual nas mulheres e as suas implicações na produtividade. Vasculhou os apontamentos, o material que encontrou na mesa de trabalho e copiou para uma pen a informação que descobriu no computador. Verificou que tinha de voltar lá muitas noites para perceber o estudo, mas isso não era problema. O que ele queria, era que o estudo estivesse numa fase avançada para rapidamente por em prática o seu plano. Depois de muito procurar encontrou uma pista muito importante que o Professor, inadvertidamente, deixou ao acaso. O homem invisível ficou esfusiante de alegria. O frasco tinha uma etiqueta que dizia: antídoto para o prazer sexual. Era um líquido viscoso, incolor e inodoro. O homem invisível levou consigo o frasco e durante uma semana foi viver para casa do seu amigo Rui e da Marlene. O líquido viscoso passou a fazer parte das refeições da Marlene, até esvaziar o frasco.

Só ao fim de alguns dias é que o Prof. David Wright deu falta do frasco do antídoto, mas não se preocupou muito, porque o frasco que continha o líquido que estimulava a actividade sexual estava bem guardado no cofre do seu gabinete. Metade do segredo ainda estava bem guardado e os estudos podiam continuar. Quando o Rui chegou ao laboratório nesse dia, o Prof. comentou com ele o sucedido. O Rui ficou muito embaraçado e tentou disfarçar o melhor que pode o seu nervosismo. A sua cabeça pensou que se calhar tinha levado o frasco errado para casa e a Marlene, que ainda devia estar a ser drogada com o estimulante, já tinha passado à fase seguinte que era testar o antídoto. Ficou muito zangado consigo mesmo por ter alterado involuntariamente o plano estabelecido, mas agora só lhe restava uma solução, que era estudar o desempenho produtivo da Marlene perante a inibição da actividade sexual. Depois de um mês de observação chegou à conclusão de que sem actividade sexual a produtividade tinha baixado e o mesmo resultado foi constatado nas outras cobaias.

O homem invisível, para além de invisível sentia-se um super homem com poderes especiais. A Marlene tinha deixado de por os palitos ao seu amigo Rui e tinha perdido todo o brilho de mulher sedutora. Todo emocionado, foi ter com o seu amigo para lhe contar qual era o seu futuro trabalho, quando deu de caras com o Rui e o Prof. Wrigt a beijarem-se na boca e a trocarem carícias. O homem invisível deu meia volta, saiu do laboratório e foi pelo corredor fora a rir que nem um tolo.
M.
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sexta-feira, 18 de novembro de 2011

A ERMELINDA

A Ermelinda viúva e reformada, era mais uma das figuras errantes que vagueava pela cidade. Nos últimos tempos, a Ermelinda andava meia sonâmbula pelas ruas. Não dormia bem e os sonhos estavam a minar a sua frágil existência. Tinha uns sonhos persistentes que a deixavam muito angustiada e aflita. Sonhava que as paredes do quarto se começavam a mexer lentamente e se aproximavam uma da outra. Sentia-se toda apertadinha até que o seu quarto virava folha de papel fotográfico e ela toda espalmada numa fotografia. Passados uns minutos, as paredes voltavam ao sítio mas ela ficava caída no chão como folha de árvore no Outono. Outras noites, sonhava que o tecto se aproximava do chão e lá ficava ela como aquelas bonecas antigas impressas em papel a quem se podiam mudar os vestidos.

De tanto sonhar, a Ermelinda andava cada vez mais baralhada das ideias. Ficou convencida que tinha ganho uma peçonhenta alergia às paredes e tectos, porque quando entrava em casa sentia a cabeça à roda, o corpo todo cheio de comichão e como se isso não chegasse, ainda se sentia enjoada. Sozinha em casa, a vida para  ela não fazia sentido. Sempre gostou do ar livre, do sol e de muita companhia, por isso a casa estava a tornar-se uma autêntica prisão. Decidiu experimentar passar a dormir na rua. Não era muito confortável mas deixou de sonhar com paredes e tectos movediços. Acordava e dirigia-se a casa para tomar um bom banho quente e mudar de roupa. Saía logo e lá ia ela peregrinar para as movimentadas ruas da baixa onde fazia todas as suas refeições.

Na hora do almoço entrou no restaurante do costume e disse ao empregado:
- Sirva-me depressa porque anda a Torre dos Clérigos atrás de mim.
O empregado que já a conhecia brincou com ela e disse-lhe:
- D. Ermelinda amanhã pode trazer a Torre dos Clérigos para almoçar, que o chefe arranja um prato especial aí com uns dois metros de altura. A Ermelinda almoçou e lá foi ela ver as montras que já tinha visto no dia anterior. Entrou nalgumas lojas de comércio mais antigo onde tinha amigas com quem conversava e a quem se queixou da terrível perseguição de que era alvo e dizia:
- Segunda-feira tenho uma entrevista marcada para falar com o presidente da Câmara, para mandar prender a Torre dos Clérigos. Já estou farta daquela torre tão alta atrás de mim, todo o dia, para qualquer lado que eu vá. Se fosse um bispo atrás de mim ainda vá que não vá.

Segunda-feira lá foi a Ermelinda para a câmara e cruzou-se no passeio com um cavalheiro que lhe dirigiu a palavra. A Ermelinda olhou fixamente o homem mas nenhuma lembrança lhe vinha àquela frágil cabeça e secamente lhe disse que não se lembrava de quem ele era. Ele, com um grande sorriso nos lábios disse-lhe que era o Pedro e que tinha andado com ela na faculdade. Disse-lhe ainda que estava um bocadinho mais gordo e diferente, mas se ela fizesse um esforço iria lembrar-se. A Ermelinda tinha tido uma paixão por ele e essas coisas nunca se esquecem.
A Ermelinda um pouco atordoada, fez um grande esforço de memória e consegui lembrar-se do charmoso Pedro que destroçava o coração das jovens meninas.
Confirmou que sempre se lembrava dele e convidou-o para almoçar. Ele confirmou que estava disponível e ficou decidido o almoço para o dia seguinte ao encontro. A conversa não se alongou mais, porque estavam ambos com horas marcadas e despediram-se muito sorridentes e felizes com um abraço.

No dia seguinte a Ermelinda caprichou na sua toilette. Vestiu o fato mais bonito que tinha, perfumou-se e foi ao cabeleireiro.
Quando a viu, o Pedro ficou impressionado com a sua aparência e beleza. Durante o almoço falaram muito porque tinham muito para contar um ao outro depois de tantos anos de silenciosa ausência. No meio da conversa, ele soltava um elogio à sua beleza. Ela, toda vaidosa e sensível ao elogio, agradecia. Mais dois dedos de conversa e mais um reparo à sua beleza, aos seus doces olhos verdes, ao seu sorriso, às suas delicadas mãos com dedos finos e compridos. Falaram das suas vidas, do bom e do mau que lhes tinha acontecido e chegaram à conclusão de que o mundo já não precisava deles, mas eles sentiam que precisavam um do outro. Na despedida ela confessou-lhe um segredo. Disse-lhe que andava uma girafa atrás dela que tinha vindo do Parque Nacional do Seringueti e não a largava.

O Pedro foi para casa a pensar na saúde mental da Ermelinda. O seu coração que andava tão vermelhinho e nas nuvens ficou muito apertadinho. Divorciado, apaixonado e solitário, tinha todos os ingredientes certos para fazer da Ermelinda uma mulher feliz e decidiu que no próximo encontro a convidaria para ir viver com ele.

Para uma ocasião tão importante o Pedro levou o coração cheio de esperança. Sabia que podia contar com o seu charme e o seu alegre modo de estar na vida.
Estava muito calmo e cheio de ternura. Os seus olhos brilhavam de tanto entusiasmo. À volta da sua cabeça sentia uns passarinhos a chilrear e a esvoaçar com lindos ramos de flor de laranjeira. Estava muito comovido naquele momento tão importante da sua vida. A voz tremeu-lhe, tropeçou nas palavras, e quase lhe faltava o ar quando perguntou à Ermelinda se queria ir viver com ele. A Ermelinda disse logo que sim mas tinha uma condição. Ele tinha de a deixar levar a girafa consigo.

O Pedro agarrou-lhe a mão, deu-lhe um beijo cheio de ternura e disse-lhe que sim. Estava ansioso pelo momento da união e percebeu que com tempo, paciência e muito amor a Ermelinda acabaria por ficar bem.

Moram os dois junto à praia e todos os dias de sol caminham à beira mar de mão dada. Continuam muito apaixonados e ela já dorme bem quando o Pedro deixa. Continua a dizer que anda uma pantera negra atrás dela e todos os dias vai ao jardim colocar comida para o felino. O certo, é que a comida desaparece sem ficar uma migalha.

M.
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sexta-feira, 11 de novembro de 2011

O FAÍSCA

Sexta-feira treze, um soalheiro dia de primavera, estava um jovem cachorro na berma da estrada à espera de alguém que lhe desse comida e uma casa para morar a troco de companhia, quando viu ao longe o Manuel na sua bicicleta. Olhou para ele à distância e achou que tinha ali o que procurava. Correu atrás dele a abanar as orelhas e quando o Manuel parou no local do trabalho, o rafeiro espertalhão começou a lamber-lhe as mãos, a abanar o rabo e a choramingar baixinho. Perante tão comovente cena o Manuel derreteu-se todo, foi à lancheira e retirou um pouco do seu almoço e deu-o ao cachorro.

Ficou claro para ambos que nascia naquele instante uma grande amizade e que seriam amigos inseparáveis.



Para o cachorro não ter de correr atrás da bicicleta o Manuel adaptou um cesto entre o guiador e o selim e era mesmo engraçado ver o Faísca a ir trabalhar todos os dias com o seu dono. O Cachorro era mesmo bonito, branco com manchas amarelas, pelo comprido, cauda de raposa e um ar muito ladino. Os hábitos do dono já eram bem conhecidos do Faísca que, de manhã, não era preciso chamar por ele, pois já estava dentro do cesto em cima da bicicleta quando o Manuel aparecia à porta de casa. À tarde, quando o sino da torre da igreja dava as cinco badaladas, o Faísca ia logo ter com o Manuel para ele largar o trabalho. O Manuel saía da oficina com um certo alívio por ter chegado o fim de mais um dia cansativo de trabalho e rumava para a taberna da aldeia onde fazia escala antes de chegar a casa. Todos os dias cumpria religiosamente aquele ritual com o Faísca. Na taberna, comentava com os amigos:

- Desde que adoptei aquele cachorro que a minha vida mudou e até está mais divertida. O Faísca é um brincalhão e faz-me muita companhia!



Aqueles copitos bebidos com os amigos davam-lhe muito prazer.



O Manuel já estava habituado a ver umas borras próprias do vinho zurrapa no fundo de cada copo, mas desde que o Faísca entrou na sua vida, o copo passou a mostra-lhe umas caras. O Manuel estranhou, mas de imediato pensou que tinha bebido um copito a mais sem dar por isso. No dia seguinte, mais atento, o Manuel percebeu que no fundo de cada copo que bebia aparecia a imagem de um santo. Intrigado, começou a falar com o Faísca no caminho para casa.

- Não percebo nada disto Faísca, mas desde que te adoptei que coisas muito estranhas me estão a acontecer.

O Faísca que não tinha o dom da palavra só dizia Auh! Auh!...Auh! No dia seguinte o Manuel levou lápis e papel para escrever o que via no fundo do copo, porque depois de dormir já não se lembrava qual o santo que tinha visto. Mas o copo resolveu pregar-lhe uma partida e no meio das borras estava um peixinho com a boca toda aberta. Aí, o Manuel, que ainda só tinha bebido um copito, sentiu uma faísca na cabeça e lembrou-se que na oficina estava a fazer os peixes de pedra para a fonte da vila que ia ser inaugurada naquele verão. Mais uma vez fez a viagem a falar com o Faísca, ou melhor, ele falava em voz alta para ver se alguma explicação lhe chegava aos ouvidos trazida pelo vento, mas nem o vento queria imiscuir-se no assunto, nem o Faísca estava interessado em esclarecer o caso.



A fonte foi levada para o local escolhido. Ficou no bonito jardim da vila que foi feito aproveitando o relevo natural do local que se estruturava em socalcos e ficou encostada a uma parede muito soalheira. Tinha uma bica central e em baixo sete peixinhos que também deitavam água pela boca.

Toda a vila gostou do trabalho do Manuel e a fonte dava mais vida ao bonito jardim. Quando lhe dava o sol em cheio e estava um bocadinho de vento até se via o arco-íris. Quem lá passava todos os dias começou a perceber que algo de estranho acontecia naquela fonte. Quando passavam de manhã, os peixinhos estavam virados para nascente. Quando passavam ao meio-dia, os peixinhos estavam virados para sul. Quando passavam ao fim da tarde, os peixinhos estavam virados para poente. Todos os dias de sol os peixinhos rodavam que nem girassóis. O fenómeno, insólito, já era comentado por toda a vila. As pessoas perguntavam se aquilo era um milagre, um presságio ou magia.

Foram ter com o Manuel para pedir uma explicação mas este ficou de boca aberta. Já tinha ouvido um zunzum mas achou que eram os amigos da taberna a gozar com ele e por isso não tinha ligado nenhuma.



No dia seguinte apareceu lá na oficina o comprador da estátua do São Pedro que veio de muito longe, de propósito, para dizer ao Manuel que já tinha visto o seu santo a verter lágrimas cor de vinho. O Manuel ficou sem saber o que dizer. Coçava a cabeça para ver se saía alguma ideia mas não tinha mesmo nenhuma explicação para dar. Todos os últimos santos vendidos tinham a faculdade de chorar lágrimas de sangue. Todos os compradores faziam questão de passar na oficina do Manuel a relatar o facto motivados pela notícia do caso misterioso da fonte dos peixes girassol. Intrigado com o assunto, o Manuel achou que quem o poderia ajudar a esclarecer o mistério seria a bruxa e sendo assim foi procurá-la. A bruxa consultou os astros, o tarot e os espíritos e disse ao Manuel que ele tinha uma missão muito importante cá na terra e em breve ia ter uma grande surpresa. O Manuel saiu de lá mais baralhado e arreliado do que quando entrou porque a bruxa ganhou o dinheiro e nem sequer adivinhou o que iria acontecer no futuro.



Como já era hábito do Manuel comentar a sua vida com o Faísca, pediu-lhe ajuda, mas este que até sabia o porquê de tudo isto, não o podia esclarecer porque não podia falar.

Entretanto a água da fonte foi ganhando algum verdete. O Inverno chegou e as pedras da fonte foram perdendo aos poucos aquele brilho de novo, mas continuava a ser um monumento muito bonito do qual o Manuel se orgulhava muito. Um dia estava o Manuel na taberna a beber uns copos e no último copo que tinha bebido apareceu nas borras uma nota de 500 euros. Era muita a confusão na cabeça do Manuel. Esta mensagem não era nada óbvia e por muitas voltas que desse ao miolo não achava resposta. De repente, o Faísca que estava lá fora à sua espera, ladrou. Na sua cabeça deu-se um click e o Manuel percebeu de imediato que a única coisa que tinha a fazer era aumentar os preços do seu trabalho, porque quem queria obra mágica tinha de pagar bem mais caro.



Não tardou muito o Manuel passou a ser um homem rico. 



M.
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segunda-feira, 24 de outubro de 2011

A casa do Gonçalo

Quando for grande a minha casa vai ser muito especial. Vai ser uma casa que vai saber dançar e ouvir música.

O meu tio Pedro, que é pescador, também tem uma casa muito especial. Ele até tem duas casas, uma casa em terra que não sai do sítio e uma casa que vai ao mar e vem. Ele está muitas vezes nessa casa que leva quando vai pescar para muito longe. Às vezes está lá muitos dias. A casa tem quarto, cozinha e quarto de banho. O tio Pedro diz que gosta muito daquela casa. Quando está para adormecer, a casa, que se chama barco, dança com as ondas e ele diz que é muito bom adormecer assim, embalado como se fosse um bebé. Ele também diz que de noite é muito bonito olhar para o céu e ver tantas estrelas, muito, muito brilhantes. As casas que andam no mar, os barcos, têm todos um nome. O barco do tio Pedro chama-se “Cavalo-Marinho”. Eu já andei nele e também gostei muito de ser embalado pelas ondas do mar. O mar tem uma música muito fresca que faz cantar as gaivotas e as ondas fazem cantar as sereias nas noites de lua cheia. O mar é muito grande e como tem peixinhos, dá trabalho a muita gente e ao meu tio Pedro também.

Quando for grande como ele, não quero ser pescador! Quero ser músico! Quando for grande vou mandar fazer uma casa que saiba dançar assim como o barco do tio. Quando eu estiver a tocar uma música a casa vai dançar sem cair. Também gosto muito de dançar, mas a música é mais importante, porque não se dança sem música. O chão vai ter teclas de piano, para fazer música enquanto caminho. As paredes não vão ser bem paredes, vão ter cordas como as harpas para eu tocar enquanto vou a passar. A música vai encher a minha casa de alegria e vai ser divertido correr pela casa para descobrir de onde vêm as notas musicais, como quem brinca num labirinto. Vou sentir o chão a dançar, assim como as janelas, as portas e o telhado, vão bailar ao som da música que eu vou tocar docemente. Até os passarinhos, vão poisar no beiral das janelas para dançarem ao som da minha música. As árvores, que já sabem dançar com a música do vento e da chuva, vão gostar de morar na minha casa. Assim, quando não houver nem chuva nem vento, elas vão dançar com a minha música. A minha casa também vai ter um nome como o barco de tio Pedro. A minha casa vai chamar-se CASA da MÚSICA. Vou tocar muitas músicas para por tudo a dançar à minha volta.

O meu pai já me disse que as casas só dançam quando a terra se zanga com os homens e treme, mas eu não acredito. Também pensei ser só músico no mar, porque assim já tinha uma casa que sabia dançar, mas o meu tio diz que os peixes não têm ouvidos e, por isso, eu ia ficar muito triste.

Eu quero tocar muita música para fazer as pessoas felizes.


M.
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sexta-feira, 7 de outubro de 2011

NÃO VÁS

Dois pontos
Nova linha
Travessão.
Uns ficam
Outros vão.

Ponto final
Parágrafo
Blá blá blá
Exclamação.

Reticências
Interrogação
E para onde vai teu coração?
Nem tu sabes
E eu também não.

Vamos abrir um parênteses
Para guardar nossas dúvidas
Fazer um ponto parágrafo
E também um ponto final.

Vírgula,
Talvez a vírgula,
Que deixa tudo em aberto
Escolhe entretanto o acento
Agudo grave ou circunflexo
Vice-versa ou versa-vice
Tanto faz,

Desde que não vás.

M.


quinta-feira, 29 de setembro de 2011

TI ZÉ DA BOINA

Noites e noites sem dormir. Andava assim o Ti Zé da Boina, desde que recebeu a carta de despedimento da fábrica de calçado onde trabalhou desde sempre. Já lá iam mais de sete luas e o Ti Zé não se conformava. Nem ele, nem a sua mulher, também de sempre, a Bina. Não havia nada a fazer. Tinha de se convencer que assim era. Com a idade que tinha, ninguém o queria para trabalhar. Infelizmente, como ele, havia muitos mais na vila.

Cabisbaixo e muito pensativo andava o Ti Zé. Nem o sol lhe aquecia a alma. Nem a Bina o conseguia animar com o seu feitio brincalhão. Dona de casa competente, a Bina entretinha-se a fazer de tudo um pouco. Cuidava da casa, dos bichos, da horta e assim se mantinha ocupada, o que era bom para a sua cabeça. Ti Zé, sentia que tinha de fazer algo. Mas o quê? Queimou as pestanas de tanto pensar e afinal a solução era bem simples: Sapatos! Era o que ele sabia fazer e ia continuar.

Receoso, muito inseguro, teve de ganhar muita coragem para contar à Bina o que andava a pensar: montar uma oficina nos anexos e fazer sapatos. Não eram quaisquer uns. Eram sapatos especiais. Sapatos para palhaços.

A Bina ouviu com toda a atenção mas ficou muito receosa quanto ao sucesso da ideia do seu marido. Ficou a moer na ideia. Afinal não há assim tantos palhaços. Nem vê-los, nas aldeias do interior. Como é que iriam fazer sair os sapatos dos anexos?

No fim-de-semana seguinte a conversa repetiu-se, mas, desta vez, com o seu neto favorito, o mais velho, de quem era um grande admirador pelo seu feitio optimista e brincalhão.
- É fácil avô. Eu trato das vendas! - dizia o neto todo entusiasmado pois sabia que na volta ia receber uns trocos.

O avô confiou. Sem ter de sair de casa e só com o computador, o Ti Zé continuava sem perceber muito bem como é que ele ia fazer sair os sapatos dos anexos.

Ti Zé idealizou os seus primeiros sapatos de palhaço muito coloridos, grandes para burro, cordões grossos, muito garridos, muito redondos, altos na frente e meteu mãos à obra, com o seu coração a transbordar de alegria que nem lhe cabia no peito.

Sempre muito entusiasmado o Ti Zé foi acumulando os pares de sapatos nas prateleiras do anexo durante alguns meses.

A Bina até achava piada aos folclóricos sapatos mas falava com os seus botões. Será que vão mesmo entrar no circo?

De repente, com grande surpresa e espanto do Ti Zé os telefonemas começaram a chover. Telefonemas e não só. Os próprios artistas faziam questão de ir pessoalmente fazer a compra. E todos ficavam contentes com a qualidade do trabalho do Ti Zé.  A perfeição era por demais evidente e mais espantados ficavam os palhaços quando experimentavam tão agradável conforto nos seus pés. Até parecia que caminhavam nas nuvens, de tão fofos que eram.

A Bina ficava babada de orgulho quando toda a gente lhe falava no sucesso, que já tinha passado a fronteira da vila.

Choviam encomendas. Foi um passo até aparecerem os palhaços dos circos estrangeiros. Aí, o Ti Zé da Boina passou a ter os melhores sonhos da sua vida. Sonhava muito e até se conseguia lembrar de muitos deles de manhãzinha, enquanto se barbeava. Alguns eram bem estranhos e divertidos. Sonhava muitas vezes, que voava.


Um dia parou na rua um carro de matrícula estrangeira. À sua porta apresentava-se um gentleman. Receberam-no o melhor que sabiam e com a ajuda de um intérprete que ele trazia, lá se entenderam. O Ti Zé da Boina acabava de receber uma encomenda muito especial. O gentleman queria uns sapatos muito originais feitos conforme o seu próprio desenho. Todos os pormenores, cores, feitio, sola, tudo… e mais umas asas! O Ti Zé até achou piada. Fazer uns sapatos com asas!!! Era um desafio, mas não sabia à partida como ia fazer semelhante esquisitice. Chegou mesmo a pensar nas coloridas penas das suas galinhas.

Muito amor e dedicação pôs o Ti Zé na confecção dos sapatos alados do gentleman.
O resultado final até surpreendeu o próprio Ti Zé. No entanto era sempre uma angústia separar-se daquelas peças que ele fazia com tanto amor e carinho. Parecia-lhe que estava um filho seu a sair pela porta fora.

Os sapatos alados lá viajaram sozinhos até ao The Rainbow  Circus, na velha Inglaterra. O palhaço gentleman tinha criado um número novo para aqueles sapatos. Até o andar que tinha de fazer era diferente. Parecia que tinha ovos frescos entre as pernas!
Logo na estreia ele achou que os sapatos tinham um comportamento estranho, parece que tinham vontade própria e o queriam levar para outro lado mas ele não ligou. Alguns espectáculos depois, essa tendência foi-se acentuando e o palhaço gentleman teve de redobrar a sua atenção no comportamento dos sapatos alados. Decorridos alguns dias de estrondosas actuações, os sapatos alados resolveram dar o ar da sua graça.

Uma noite, estava a sala cheia, como de costume, o público entusiasmadíssimo, quando, de repente, os sapatos saíram dos pés do palhaço e começaram a dançar sozinhos no palco,  que nem umas marionetas. A assistência entrou em delírio e o palhaço gentleman estava muito surpreendido sem saber bem o que fazer.

No espectáculo seguinte os sapatos ainda foram mais longe. Levaram também os pés do palhaço gentleman e dançaram ao ritmo da música. Meia dúzia de passos e voltaram a encaixar nas pernas do palhaço, que entretanto não teve outra saída senão sentar-se no chão de pernas cruzadas.

Indescritível a reacção do público. Aplausos e mais aplausos, toda a plateia de pé.

O palhaço-gentleman é que não percebia nada do que se estava a passar. Apanhado de surpresa, fazia a cara mais ingénua deste mundo, o que lhe assentava muito bem.


Apesar de todo o sucesso, o palhaço-gentleman andava muito preocupado e com mau dormir, pois não sabia o que poderia acontecer no espectáculo seguinte. Não havia dúvida. O Ti Zé da Boina tinha feito os sapatos com vontade própria e isso não fazia parte da encomenda. Num sonho o palhaço-gentleman viu o Ti Zé na assistência com uma cara muito comprometida.

Apesar dos receios o palhaço-gentleman resolveu arriscar e continuar com o mais estrondoso número de toda a sua carreira.

No espectáculo seguinte, contra todas as expectativas, os sapatos não saíram dos pés mas uma sensação de levitação começou a percorrer o corpo do palhaço-gentleman. Incrédulo e muito sorridente, olhou para a assistência e lá estava o Ti Zé da Boina ao lado do seu neto, na primeira fila, com um ar muito feliz a dizer-lhe adeus. Nesse instante os sapatos começaram a bater asas e era só ver a cara do público a olhar cada vez mais para cima, a esticar o pescoço, esticar, esticar, que nem girafas para ver o palhaço-gentleman,  a subir por artes mágicas, furar a tenda e desaparecer.

Nunca visto! Seria ele um palhaço ou um ilusionista?

Um silêncio sepulcral invadiu aquela sala. O tempo parecia que tinha ficado em aflitiva suspensão. Os segundos eram eternos. De repente, as bocas abertas de espanto começaram a gritar em uníssono, volta! Volta! Volta!

E nada. Nada de palhaço. Nada de gentleman, nada de sapatos…

O palhaço que deveria aparecer para receber tão calorosos aplausos não voltou.

Ainda hoje, quando aparece o arco-íris no céu, se vê o palhaço-gentleman deitado na risca verde, com os seus brilhantes sapatos vermelhos, de asas brancas e compridos cordões azuis que cresceram e quase tocam na copa das árvores.

M.

(Este conto é dedicado à minha amiga Majo que festeja hoje o seu aniversário.)







quinta-feira, 22 de setembro de 2011

A caminho das estrelas

Desde que saíram do armazém e foram escolhidos para fazer parte do elenco da montra começaram a sentir-se muito felizes. Nunca mais pararam de conversar. Gostavam da nova vida. Podiam apreciar os curiosos olhares e os gostosos comentários à sua condição de muito útil objecto de protecção de pés femininos. Porém, tinham nascido com uma forte dúvida existencial.

Naquela noite de lua cheia a conversa desenrolava-se de forma amena.

- Não te cansas de ser sempre da direita?

- E tu? Não te cansas de ser da esquerda?

- Enfim! Que posso eu dizer! Para além de sermos gémeos já nascemos assim. Fui feito para a direita e tu, quer queiras quer não, foste feito para servir a esquerda. Não nos deram escolha. De qualquer forma estou feliz assim.

- Eu não estou feliz. Só me sentirei melhor quando me apanhar na calçada. - Dizia o    esquerdino que gostava mais de caminhar do que de falar.

Conversavam muito enquanto estavam na montra à espera de uns pés para lhes dar vida e poderem caminhar por essas ruas citadinas a fazerem inveja a quem não os tinha escolhido. Esse dia não demorou a chegar. Por lá passou a Manuela, que gostava de namorar as montras de sapatos e não resistiu a tanto charme.

Embora de tacão alto, não eram do tipo mata a barata ao canto, ou melhor, não eram os clássicos stiletto. Tinham uma cor não muito definida, entre o cinza levemente azulado, fechados e lisos, ofereciam algum conforto e não mordiam os pés. A escolha devia-se ao fato azul claro, também não muito azul, clássico, calça e casaco que lhe tinha custado uma pipa de massa, não fosse ele um Caramelo.

Palradores como eram, mesmo dentro do armário eles fartavam-se de cortar na casaca. De porta fechada podiam dizer o que lhes apetecesse. Desde comentar o árduo dia de trabalho da Manuela, a sua cuidada condução matinal na ida, à apressada condução de regresso a casa, aos que cruzavam na rua, tudo servia para motivo de tagarelice.

Adoravam andar no passeio, mas por cisma da Manuela só saíam com o fato Caramelo e carteira a condizer. Nesses dias eram os sapatos mais felizes do mundo. Não conheciam o que era o mau tempo, porque o fato era de meia estação. Curiosa, esta expressão de meia estação. Tanto quanto eles se lembravam nunca saíram a meio do Inverno.

- Adiante que atrás vem gente. - Dizia o da direita com um ar muito divertido.

- Que interessa isso? Quem manda aqui não somos nós. Só temos de obedecer. - Dizia o da esquerda.

- Então! Não te entendo. Gostas tanto de arejar e estás a refilar!

- Já viste bem aqueles chanatos naqueles pés tão horrorosos? - Perguntou o da direita com o ar mais trocista deste mundo. - Nunca te falei no assunto mas os sapatos que mais admiro são os dos palhaços.

- Deixa lá isso. Aprecia este lindo dia de sol, tão gostoso, pois não sabes se ele vai voltar a aquecer a sola do teu sapato. - Disse todo prazenteiro o esquerdino.

- É mesmo isso, esquerdino. Vamos agarrar o verão e deixar a conversa para o armário.

O resto da caminhada foi feita em silêncio. A Manuela tinha o hábito de aproveitar a parte que sobrava do intervalo de almoço para passear e ver as montras de soslaio.

As estações iam mudando e os sapatos faladores foram invadidos por uma profunda tristeza. Perceberam que já não saíam mais do armário. Andavam muito sorumbáticos e intrigados com tamanha clausura, até que foram ter com o fato Caramelo para saber o que se estava a passar.

- Olha lá, ó caramelo, sabes porque é que já não saímos juntos? - Perguntou o da direita que era o mais falador.

- É curioso, também tenho andando muito angustiado e intrigado com essa dúvida, mas como já não aguentava mais, ontem, enchi-me de coragem e perguntei ao príncipe de gales e ele disse-me:

- É com alguma apreensão que te vou contar a história, mas acho que nem a Manuela sabia que a vida dela ia dar uma grande volta. Pareceu-me que ia ser bom, mas como em tudo na vida, há sempre um lado bom e outro menos bom, não sei se ela se vai adaptar a tão grande mudança. Fiquei muito honrado por ter sido eu o escolhido para aquela difícil entrevista. Não foi fácil mas pelo que ouvi, a proposta era boa e a Manuela jubilou.

- Ora bolas! Então é isso! Também deixamos de trabalhar? - Dizia o esquerdino muito arreliado e desesperado.

A Manuela, que pelo B.I. media 1,73m já não precisava de saltos altos para fazer figura. Começou a usar saltos baixos. Tristes andavam os sapatos, ou melhor não andavam. Falavam muito no seu destino. Alvitravam palpites mas nada acontecia. Dias e dias fechados no armário… Estação atrás de estação e, nada…

Já se sentiam quase semi-mortos, mesmo moribundos quando inesperadamente a Manuela resolveu fazer uma arrumação no roupeiro.

- Acorda! Acorda! É hoje que vamos passear! - Dizia todo entusiasmado o da direita quando sentiu uns quentes raios de sol a invadir o armário.

- Ser…áaa     ho…jeeee! – Balbuciava o esquerdino todo remelento, ensonado e sem brilho nenhum.

- Vamos lá dar um pouco de corda aos sapatos! -Dizia o Caramelo a rir. – Consolem-se comigo meninos, que também sinto na pele um futuro cheio de incertezas.

Cinzento, estava o futuro. A porta do armário estava aberta, não para um passeio, mas para uma grande arrumação. Sem saber bem o que fazer, a Manuela meteu os sapatos que já não calçava numa saca e levou-os para a garagem. Triste e choroso, o esquerdino lamentava-se:

- Perdemos estatuto. Estamos condenados! Lixo, meu irmão! É o lixo o nosso fatídico destino. Daquela confortável prateleira estamos metidos num beco sem saída!

- Tem calma. Ainda nem tudo está perdido. Podemos ir parar a um par de pés simpáticos, cheirosinhos, sem joanetes e bem pedi curados. – Consolava-o o da direita.

-  Ainda te sentes assim tão jovem?

- Claro, estou como novo. Rompo estas e mais meias solas.

- Estou para ver! Eu vou hibernar até à nova estação, que nem um urso polar.

Um dia a Manuela aprendeu com umas amigas umas técnicas de artes decorativas e no verão utilizou a garagem para alguns trabalhos. Findos estes, seguiu-se uma breve arrumação naquele espaço o que a fez tropeçar nos sapatos.
Olhou para eles e como eram interessantes, a Manuela resolveu transformá-los, sem saber qual a utilidade que lhes podia atribuir, mas uma coisa era certa, sabia que iam ficar muito bonitos.
Começou por colar um bocado de papel ali, bem a direito, outro acolá, mais atravessado, um no interior, bem discreto, outro no exterior, bem colorido, agora mais um no calcanhar, para condizer e logo outro na biqueira, para marcar presença,  jogando sempre com as formas e cores das tiras de papel e escolhendo sempre o lado mais fotogénico do sapato. Nas suas mãos, surgiam uns sapatos alegres e originais, renascidos.

 Entretanto, ia ouvindo os curiosos comentários.
- Olha o meu tacão! Acreditas que lhe nasceu um olho azulão? - Tão espantado estava o esquerdino.

- Não te admires, que acabou mesmo agora de florir uma rosa vermelha no meu tacão. E  uma boca feminina, muito sensual, acabou de se colar ao meu calcanhar!!! Acreditas esquerdino?

- O que é que ela vai colar na minha biqueira? Teremos de esperar até amanhã para ver. Ela está a lavar o pincel. Vamos dormir um pouco. - Dizia sossegadamente o esquerdino que confiava no bom gosto da Manuela.

Passaram a noite a coçar-se por causa da cola. Acordaram estremunhados com os passos da Manuela.

- Olha, olha, lá vem ela! Vamos ver o que vem a seguir. Hoje ainda estou mais curioso do que ontem. - Comentava o da direita.

No conjunto de tantas imagens, Manuela lá ia escolhendo e colando os bocados de papel.

- Agora é que estou a gostar! A minha biqueira tem pés descalços, um sapato preto, uns dedos com unhas pintadas de azul e uns morangos. Achas bonito esquerdino?

- Vais ficar cheio de inveja! Olha para a minha biqueira! Estou que nem uma cereja em cima do bolo. Adorei! Já viste que “fashion”  estamos?! Melhor do que qualquer par da colecção Primavera/Verão da próxima época. Somos únicos!!! Como te dizia, o final feliz está a chegar. - Afirmou o esquerdino.

Depois de prontos a Manuela fotografou-os.

- Já viste onde estamos esquerdino? Estamos na Internet! - Disse o da direita.

- Internet? Que é isso irmão? Isso é um destino? Já não saímos à rua?

- Somos sapatos reais e podemos fazer caminhadas virtuais. - Esclareceu o da direita.

- Estou todo baralhado! Já não sei se sou da esquerda ou da direita! Mas, pelo que me parece podemos ser eternos? E podemos caminhar até às estrelas? E podemos andar sempre juntinhos? Estarei a pensar bem? Ai que feliz eu vou ser! - Suspirou profundamente o esquerdino.

- Olha bem para o que te digo! Nunca seremos sapatos de defunto.


quarta-feira, 7 de setembro de 2011

7 DIAS



hoje, sinto-me poeta

ontem, fui profeta
amanhã, vou ser pintora
sábado, vou ser pensadora
domingo, vou ser cristã
segunda, vou ser pagã
terça, vou lavrar a terra
                        podar as roseiras e vindimar
quarta, vou ser lavadeira
                        e as minhas mágoas ao rio vou lavar
quinta, vou fazer pão
                        e acabar o dia com uma oração
sexta, não ser que faça…
já sei!
vou percorrer os caminhos até à senhora  da graça.

M, 7 de setembro, 2011
www.bebebabel.com.pt

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Requiem d-moll KV 626



A rapariga, com um andar felino, percorria os profundos corredores desertos,  silenciosa e delicadamente. Repentinamente, junto à saída de emergência para as traseiras na porta leste, tropeçou numa coisa escura e roliça que quase a atirava ao chão. Retomou o equilíbrio e tentou identificar o inesperado obstáculo, que, para seu espanto, já lá não estava. Intrigada, olhou à sua volta e descobriu no virar da esquina, um olho luminoso que a fitava fixamente. Foi-se aproximando lentamente e exclamou:

- Um bichano por aqui? Sabes que me pregaste um susto de morte? Seu safado! – resmungou ela, meio séria, meio a rir. E perguntou:

- Como te chamas?
- Miau…miau ….miau … - respondeu o gato muito seguro de si.  - Eu não tenho nome, sou o gato sem nome, ou melhor, a gata sem nome. Ouviste bem? G A T A!

- Ok, ok, já percebi. Mas que faz uma gata sem nome neste corredor?

- Ora essa! Não faço nada, estou só a passear.

- Pois é,  gata sem nome, mas vais ter de ir de requitó para a rua, porque aqui não podes ficar. E já agora, por onde é que tu entraste?

- Isso não é da tua conta! Conheces os cantos todos à casa, mas ainda te escapam alguns buracos. Descansa, que ainda nos vamos encontrar mais vezes. Miau…

E de repente, tal como apareceu, desapareceu.

A Sofia ficou divertida com esta cena tão inesperada e lá continuou a sua ronda. Com um leve sorriso nos lábios, percorreu o edifício que já se encontrava fechado ao público. Ia caminhando e pensava na enigmática conversa que teve com o bichano das quatro patas, que era uma gata já bem adulta.

Passados uns dias,  a Sofia já tinha esquecido o encontro da gata, quando no corredor silencioso ouviu um miado. Parou, olhou para trás e lá estava a gata sem nome.

- Olá. Outra vez por aqui? Já te disse que não podes frequentar esta casa? Vais ter de sair, minha linda bichana.

- Para tua informação, ficas a saber que já moro aqui. Cansei de ser gata de rua e desempregada. Agora tenho uma ocupação muito importante. Miau…

- Pois, pois. Eu, que sou licenciada em História, ando aqui a fazer vigilância e tu, gata da rua, vens dizer-me que tens uma ocupação muito importante?!

- Cada um é importante à sua maneira. Eu digo-te que ainda vou ser famosa e vais ouvir falar de mim. Miau…

E com o rabo levantado, a gata sem nome, desinteressada da conversa afastou-se suavemente, calcando com as suas delicadas patas aquele chão de mármore  que lhe era tão macio e confortável.

Sofia ainda soltou algumas palavras mas que por falta de resposta caíram no chão, sem o menor ruído.

No dia seguinte, a gata sem nome, aparece em frente da Sofia saída do corredor do lado direito e parou mesmo aos seus pés.

- Terceira vez! É a terceira vez que te vejo. – Contabilizou Sofia, desportivamente.

- Sim, sim. Vamos ter uma conversa muito séria. Senta-te naquele sofá e ouve-me com atenção. Miau…

A Sofia obedeceu  às ordens da gata sem nome e sentou-se.

- Tens de ser breve pois tu sabes que as minhas rondas são cronometradas e não posso quebrar o esquema senão sou despedida.

- Vou ser breve. Não contes a ninguém, mas se calhar ainda vais ver mais gatos por aqui.
É um segredo entre nós e como já sei que gostas de gatos, não vais estragar os meus planos. Eles sabem quais os caminhos que podem percorrer e a que horas, por isso não te vamos criar problemas e quando formos famosos, tu vais sentir muito orgulho em nos ter ajudado. Miau…

E como de costume, a gata sem nome desaparecia de rabo no ar, sem deixar rasto do seu destino.



Era lá que tudo se passava.
Na cave, junto às máquinas do ar condicionado, havia um grande espaço onde estavam, em jeito de arrumos, alguns objectos tais como escadas, secretárias, cadeiras, bancos, etc. Os gatos já se tinham assenhorado daquele espaço e adoravam aquele quentinho que saía da máquina do ar.

A gata sem nome tinha reunido ali uma trupe de parceiros, vindos das ruas e das ilhas circundantes. Todos os gatos das redondezas que ela conhecia tinham sido convidados. Os filhos dela, os netos, os primos, os amigos, todos os que sabiam cantar, estavam lá. A gata sem nome, porque gato de rua não tem direito a nome, mas também não precisa, estava muito empenhada na ideia que tinha tido e que lhe estava a dar água pelos bigodes porque aqueles vadios peludos ainda não tinham apanhado bem a ideia. A ideia andava no ar, mas ainda não lhes tinha entrado bem no pelo.  Despreocupados, diziam uns para os outros:

-  Temos de virar cantores de música clássica! – Disse a gata tigrada da Rotunda da Boavista.
-  Foi essa a tarefa que a gata sem nome nos atribuiu, em troca de abrigo seguro e comida boa. – Confirmou o gato amarelo sem rabo.

- Temos de afinar a garganta e cantar bem atinados, nada de desgarradas. – Cantarolou o juvenil siamês.
- Pensando bem até que é uma boa ideia. Nada como experimentar. - Dizia o mais novato e traquinas lá do sítio.

Meteram patas à obra e todos os dias ensaiavam. Uns, nos degraus das escadas, outros, nas cadeiras, outros nas secretárias, todos juntinhos em forma de coro. A gata sem nome, que já tinha fato de maestrina por natureza, ficava em frente da trupe a dar as suas dicas seguindo a partitura.

Começaram por ensaiar coisa simples, que ela tinha encontrado no arquivo mas o seu objectivo era bem maior. Clássicos! Eram os clássicos que a fascinavam!

Trabalharam muito e com muito entusiasmo de gato. No fim de alguns meses o resultado estava à vista. Os peludos todos tinham as vozes bem afinadas e dentro do tom.

Uma noite o director artístico da Casa da Música resolveu ficar a trabalhar até mais tarde. Andava aflito atrás de um trabalho que misteriosamente lhe tinha desaparecido.  Lembrou-se que talvez tivesse ido nalguma gaveta da sua secretária velha que foi arrumada na cave. Para não ter de o repetir, lá foi ele fazer a busca.

Ia descendo as escadas e ouvia um coro a cantar. Aproximava-se cada vez mais e o  coro ouvia-se cada vez mais nítido. Entrou nos arrumos e para seu grande espanto e maior surpresa viu o imprevisto. O coro de gatos a cantar o Kyrie, do Requiem d-moll KV 626 de Wolfgang Amadeus Mozart. Um estrondo, em versão miau!

O director soltou um miau de espanto e beliscou-se no braço para ver se estava bem acordado. De boca aberta continuou a ouvir o coro a cantar o Confutatis, seguindo-se a Lacrimosa,  Sanctus e Agnus Dei.

- Soberbo, sublime! Bravo! – exclamou o director em êxtase, batendo sonoras palmas.

Cumprimentou a maestrina e não mais parava de lhe tecer elogios pelo magnífico trabalho que estava à mostra.

A maestrina, orgulhosa, de bigodes espetados, com o rabo todo no ar, lambeu a mão do director em jeito de agradecimento e disse:

- Senhor director, tenho um pedido a fazer-lhe. Quero dar um concerto na sala Guilhermina Suggia, com a orquestra residente.

- Muito bem, disse o director. Vou reunir com o meu grupo de trabalho e depois darei a minha resposta.

A decisão estava longe de ser unânime. As mudanças são sempre difíceis e a orquestra não estava de acordo, recusou mesmo a proposta. Nos corredores, os músicos comentavam à boca cheia que o Sr. Director tinha endoidado.

O director não hesitou e ofereceu a sala mais pequena para o concerto bem como uma boa gravação da parte instrumental da obra. Organizou o concerto inaugural, convidou e imprensa e um grupo de amigos.

Bom, o sucesso estava garantido a avaliar pela primeira impressão. A imprensa fartou-se de dizer mil maravilhas e os críticos de arte também. Daí até ao sucesso foi um miau.

A sala Guilhermina Suggia ficava esgotada todas as noites e o público não se cansava de bater palmas no fim de tão grandioso espectáculo. Parte do Requiem de Mozart, ali, magnificamente  interpretado pela gataria. Um assombro! Um espanto!

Se a Casa da Música já era famosa pelo seu arrojado edifício e conhecida pela diversidade e qualidade dos seus programas ficou ainda mais famosa mundialmente. Eram organizadas excursões no estrangeiro para trazer  espectadores a Portugal, que também ficou famoso pelo coro dos gatos.

Estes, decidiram em reunião de cave, que de todo o dinheiro apurado, que não era pouco,  5% era para criar uma fundação de ajuda a gatos de rua gerida por eles mesmos.  A grande fatia do bolo, 95%, era entregue generosamente ao governo para nos livrar desta sarnenta e tinhosa crise.