terça-feira, 12 de julho de 2011

Cá se faz cá se paga

Terceira idade. A meta final da vida. Assim estão a Alice e o Manuel, sentados na área de restauração do Norte Shopping a saborear um lanche de sábado à tarde.
Filhos criados, netos com os pais, toca a distrair para não ficar em casa. A Alice é dona de casa e esposa de um comerciante. Cabelo bem arranjado, uma vez por semana ida ao cabeleireiro, pois a Alice tem cabelo loiro sem uma única branca. A roupa é de qualidade e na mão esquerda junto à aliança de casamento tem um bonito anel com diamantes, o que demonstra estatuto social. O seu rosto, de pele clara e brilhante e olhos expressivos, fazem de Alice uma mulher interessante, mesmo com esta idade. Pela sua postura, dá para entender que é uma mulher aprumada e, atrevo-me a pensar que é uma excelente dona de casa, muito dedicada à família e marido.
O lanche globalizado com coca-cola deixou o Manuel aflito, porque palita os dentes. Será que a coca-cola lhe ficou agarrada à placa? Vício muito feio, este de palitar dentes. A sua passividade é notória porque quase não se mexe na cadeira, nem roda o pescoço para ver passar os manequins que circulam sempre nestes espaços urbanos. Sua amantíssima esposa arruma as sobras do lanche na saca do híper que contém os frescos do dia. Uma vida com grande actividade no passado, mas sem grandes emoções no presente,  o que faz com que apreciem estes bocadinhos de lazer.
E por falar do passado,  vamos entrar na fase áurea do casal Nogueira.
Ele vendia lingerie feminina e masculina numa loja da rua das Flores. Ela não sabe da missa a metade, mas naquela loja muita prova foi feita. O Manuel não tinha empregados e lá ia dando conta do recado sozinho. Numa certa altura da vida de Alice, em que a educação dos filhos já não a ocupava o tempo todo porque já andavam na escola, falou com o marido para dar uma perninha na loja, sem horário rígido, para poder continuar com as tarefas caseiras. Tudo não passou de um desejo, pois o Manuel rapidamente a dissuadiu de tal, argumentando que não lhe reconhecia nenhuma vocação para o negócio, nem tão pouco simpatia para atender clientes. Assim se foram passando os dias e a Alice sempre em casa. Conservava um pequeno grupo de amigas de infância com quem lanchava de vez em quando, pois estes momentos eram importantes para falarem de banalidades e para se lamuriarem dos feitios dos maridos e dos problemas dos filhos. Fora isso, era o lavar, passar a ferro, cozinhar, etc. etc.
O Manuel, esse sim! Do 36, copa A, do 38 copa B e por ai fora, ia tirando as medidas a todas. Todos os dias, mais ou menos ao fim da tarde, passava na rua a Florbela, peixeira atrevida do mercado do Bolhão, de quem o Manuel não gostava nada e com razão, pois a descarada, junto da sua porta cantarolava:
- Vale mais uma na mão que duas no soutien!
Bom negócio fez o Manuel, que manteve o casamento perfeito. A  Alice nunca desconfiou da infidelidade do seu querido marido. Tudo perfeito para um casal de classe média, até que algo de estranho começou a acontecer naquele confortável lar.
A Alice, nos últimos tempos, tinha muitas insónias, razão pela qual todas as tardes saíam de casa para não adormecerem no sofá em frente à televisão. Mas nem assim as insónias iam embora.
Com muita frequência a Alice se levantava durante a noite e quando ia ao quarto de banho passava na sala e ficava toda baralhada. Não sabia se estava a dormir ou se estava acordada. Esfregava os olhos e acendia a luz do candeeiro pequeno para não acordar o marido, de quem tinha muita inveja porque dormia a noite toda.
Alice  não acreditava no que via.
Voltava a deitar-se e ficava a matutar no assunto, o que lhe  agravava a falta de sono. Ficava calada e não comentava nada com o Manuel, não fosse ele julgar que ela estava a ficar maluca.
No dia seguinte a mesma coisa.
A cena repetiu-se durante noites e noites e parecia não ter fim.
Um dia a Alice encheu-se de coragem  e parou em frente do sofá onde ela, com os olhos esbugalhados, via sete homens sentados.
No sofá de quatro lugares, estavam sentados os sete homens. Quatro  sentados normalmente e os outros três nas costas do sofá, com os pés pousados nas almofadas.
Começou a falar para eles, mas nada, nenhum deles falou. Aproximou-se e verificou que respiravam. Passou-lhes a mão em frente aos olhos e todos eles reagiram ao seu teste visual.
Cada vez mais intrigada e sem saber o que fazer, sentou-se no sofá individual. Pensou por uns segundos e chegou à conclusão que não  eram ladrões, porque aqueles rostos não eram bem reais.
 Mas alguma coisa tinha de fazer. Foi ao quarto acordar o marido e sem explicar nada, levou-o até à sala.
- Oh Manuel, que vem a ser isto, que eu não entendo nada do que se passa aqui! Estou a dormir ou estou acordada?
O Manuel olhou e ficou branco como a cal. Se não fosse a Alice tinha caído redondo no chão. Prontamente, a sua amantíssima esposa foi buscar um copo de água com açúcar para levantar as tensões do Manuel.
Os sete homens sentados no sofá, pareciam estátuas de cera.
Findos alguns minutos e depois do muito silêncio que fazia naquela sala, o primeiro homem falou com uma voz cavernosa e disse:
- É ele! É ele, o pai do meu filho!
Outro dizia:
- Era ele que durante anos me escolhia a roupa interior!
Um terceiro dizia:
- Bom homem,  o Manuel,  que enquanto eu pulava a cerca  entretinha a minha mulher!
O quarto só fez o gesto de quem gostaria de lhe apertar o pescoço. O quinto disse-lhe que tinha uma grande dívida para com ele, pois nunca tinha dado dinheiro à mulher para comprar a exagerada e excitante lingerie com que era seduzido na cama. O sexto não falou porque era gago. O sétimo pegou na pistola e como tremia muito, porque tinha morrido com Parkinson, disparou um tiro que matou a Alice.
Assim ficou viúvo o pobre Manuel.
O funeral da Alice é amanhã, às 10 horas.
M, 12 de Julho, 2011

8 comentários:

  1. Olá M,

    Só alguém com muita criatividade para escrever assim. Adorei a história... Dá que pensar...
    Quero ler mais, muito mais!
    Parabéns por este cantinho esta estante de fundo é parecida com uma bem real!

    Beijinhos

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  2. Olá M,
    E o elogio fúnebre da Alice, vai ser feito pela M?
    Se sim, é porque vamos ter em breve outro texto delicioso.
    Fico à espera!
    Parabéns e beijinho. mj

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  3. Ena, com histórias ou contos, se vão acrescentando pontos! Mas que rico marido a Alice tem, ou antes; tinha. Agora venham de lá mais capítulos,essa dos maridos falecidos ou fantasmas é boa, boa, mas que imaginação..
    Beijinho da laura

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  4. Olá M.
    Mas que imaginação e poder de observação...!
    Gostei,M.
    A pobre da Alice não merecia tal desfecho .... Quantas Alices não andarão por aí...
    Gostei dos fantasmas sentados nas almofadas do sofá!
    Beijinhos

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  5. Olá Lias.
    A vida tem destas coisas.
    Divirta-se a ler que eu divirto-me a escrever.
    Bjs.
    M.

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  6. Olá Laura.
    Estou contente por gostar dos contos.
    Esta é uma boa maneira de dar largas à minha
    imaginação.

    Bjs. Até breve

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  7. Olá Majo.
    Muito obrigada por ter despertado em mim o
    interesse pela escrita.
    Bjs.

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  8. Olá Mia.

    A casa da estante está sempre de portas abertas
    para ti.
    Bjs.
    M.

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