sexta-feira, 18 de novembro de 2011

A ERMELINDA

A Ermelinda viúva e reformada, era mais uma das figuras errantes que vagueava pela cidade. Nos últimos tempos, a Ermelinda andava meia sonâmbula pelas ruas. Não dormia bem e os sonhos estavam a minar a sua frágil existência. Tinha uns sonhos persistentes que a deixavam muito angustiada e aflita. Sonhava que as paredes do quarto se começavam a mexer lentamente e se aproximavam uma da outra. Sentia-se toda apertadinha até que o seu quarto virava folha de papel fotográfico e ela toda espalmada numa fotografia. Passados uns minutos, as paredes voltavam ao sítio mas ela ficava caída no chão como folha de árvore no Outono. Outras noites, sonhava que o tecto se aproximava do chão e lá ficava ela como aquelas bonecas antigas impressas em papel a quem se podiam mudar os vestidos.

De tanto sonhar, a Ermelinda andava cada vez mais baralhada das ideias. Ficou convencida que tinha ganho uma peçonhenta alergia às paredes e tectos, porque quando entrava em casa sentia a cabeça à roda, o corpo todo cheio de comichão e como se isso não chegasse, ainda se sentia enjoada. Sozinha em casa, a vida para  ela não fazia sentido. Sempre gostou do ar livre, do sol e de muita companhia, por isso a casa estava a tornar-se uma autêntica prisão. Decidiu experimentar passar a dormir na rua. Não era muito confortável mas deixou de sonhar com paredes e tectos movediços. Acordava e dirigia-se a casa para tomar um bom banho quente e mudar de roupa. Saía logo e lá ia ela peregrinar para as movimentadas ruas da baixa onde fazia todas as suas refeições.

Na hora do almoço entrou no restaurante do costume e disse ao empregado:
- Sirva-me depressa porque anda a Torre dos Clérigos atrás de mim.
O empregado que já a conhecia brincou com ela e disse-lhe:
- D. Ermelinda amanhã pode trazer a Torre dos Clérigos para almoçar, que o chefe arranja um prato especial aí com uns dois metros de altura. A Ermelinda almoçou e lá foi ela ver as montras que já tinha visto no dia anterior. Entrou nalgumas lojas de comércio mais antigo onde tinha amigas com quem conversava e a quem se queixou da terrível perseguição de que era alvo e dizia:
- Segunda-feira tenho uma entrevista marcada para falar com o presidente da Câmara, para mandar prender a Torre dos Clérigos. Já estou farta daquela torre tão alta atrás de mim, todo o dia, para qualquer lado que eu vá. Se fosse um bispo atrás de mim ainda vá que não vá.

Segunda-feira lá foi a Ermelinda para a câmara e cruzou-se no passeio com um cavalheiro que lhe dirigiu a palavra. A Ermelinda olhou fixamente o homem mas nenhuma lembrança lhe vinha àquela frágil cabeça e secamente lhe disse que não se lembrava de quem ele era. Ele, com um grande sorriso nos lábios disse-lhe que era o Pedro e que tinha andado com ela na faculdade. Disse-lhe ainda que estava um bocadinho mais gordo e diferente, mas se ela fizesse um esforço iria lembrar-se. A Ermelinda tinha tido uma paixão por ele e essas coisas nunca se esquecem.
A Ermelinda um pouco atordoada, fez um grande esforço de memória e consegui lembrar-se do charmoso Pedro que destroçava o coração das jovens meninas.
Confirmou que sempre se lembrava dele e convidou-o para almoçar. Ele confirmou que estava disponível e ficou decidido o almoço para o dia seguinte ao encontro. A conversa não se alongou mais, porque estavam ambos com horas marcadas e despediram-se muito sorridentes e felizes com um abraço.

No dia seguinte a Ermelinda caprichou na sua toilette. Vestiu o fato mais bonito que tinha, perfumou-se e foi ao cabeleireiro.
Quando a viu, o Pedro ficou impressionado com a sua aparência e beleza. Durante o almoço falaram muito porque tinham muito para contar um ao outro depois de tantos anos de silenciosa ausência. No meio da conversa, ele soltava um elogio à sua beleza. Ela, toda vaidosa e sensível ao elogio, agradecia. Mais dois dedos de conversa e mais um reparo à sua beleza, aos seus doces olhos verdes, ao seu sorriso, às suas delicadas mãos com dedos finos e compridos. Falaram das suas vidas, do bom e do mau que lhes tinha acontecido e chegaram à conclusão de que o mundo já não precisava deles, mas eles sentiam que precisavam um do outro. Na despedida ela confessou-lhe um segredo. Disse-lhe que andava uma girafa atrás dela que tinha vindo do Parque Nacional do Seringueti e não a largava.

O Pedro foi para casa a pensar na saúde mental da Ermelinda. O seu coração que andava tão vermelhinho e nas nuvens ficou muito apertadinho. Divorciado, apaixonado e solitário, tinha todos os ingredientes certos para fazer da Ermelinda uma mulher feliz e decidiu que no próximo encontro a convidaria para ir viver com ele.

Para uma ocasião tão importante o Pedro levou o coração cheio de esperança. Sabia que podia contar com o seu charme e o seu alegre modo de estar na vida.
Estava muito calmo e cheio de ternura. Os seus olhos brilhavam de tanto entusiasmo. À volta da sua cabeça sentia uns passarinhos a chilrear e a esvoaçar com lindos ramos de flor de laranjeira. Estava muito comovido naquele momento tão importante da sua vida. A voz tremeu-lhe, tropeçou nas palavras, e quase lhe faltava o ar quando perguntou à Ermelinda se queria ir viver com ele. A Ermelinda disse logo que sim mas tinha uma condição. Ele tinha de a deixar levar a girafa consigo.

O Pedro agarrou-lhe a mão, deu-lhe um beijo cheio de ternura e disse-lhe que sim. Estava ansioso pelo momento da união e percebeu que com tempo, paciência e muito amor a Ermelinda acabaria por ficar bem.

Moram os dois junto à praia e todos os dias de sol caminham à beira mar de mão dada. Continuam muito apaixonados e ela já dorme bem quando o Pedro deixa. Continua a dizer que anda uma pantera negra atrás dela e todos os dias vai ao jardim colocar comida para o felino. O certo, é que a comida desaparece sem ficar uma migalha.

M.
www.bebebabel.com.pt

4 comentários:

  1. Ah, já estava a ver quem seria que comia os pitéus todos, só pode ser o Pedro...
    E que sorte que a muié teve, andam tantas garinas jeitosas e lúcidas por este mundo fora que não conseguem um Pedro em condições...ou o Pedro seria a girafa ou o leopardo!...

    Beijito.

    laura

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  2. Olá M,
    A menina hoje surpreendeu-me com as imagens da Ermelinda espalmadinha, como uma fotografia no chão do quarto, ou como folha de Outono caída no chão, ou como boneca impressa em papel da nossa infância...
    Parabéns!

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  3. Olá Laurinha.
    Este Pedro estava reservado para a Ermelinda.
    O seu príncipe já vem a caminho. Não tarda muito estará ao seu lado.
    Gostei muito de a conhecer pessoalmente.
    Até breve.
    M.

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  4. Olá Lias.
    Usar a imaginação é divertido. No meio acrescento coisas da vida real e daquilo que fui aprendendo ao longo da vida.
    M.

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