sexta-feira, 11 de novembro de 2011

O FAÍSCA

Sexta-feira treze, um soalheiro dia de primavera, estava um jovem cachorro na berma da estrada à espera de alguém que lhe desse comida e uma casa para morar a troco de companhia, quando viu ao longe o Manuel na sua bicicleta. Olhou para ele à distância e achou que tinha ali o que procurava. Correu atrás dele a abanar as orelhas e quando o Manuel parou no local do trabalho, o rafeiro espertalhão começou a lamber-lhe as mãos, a abanar o rabo e a choramingar baixinho. Perante tão comovente cena o Manuel derreteu-se todo, foi à lancheira e retirou um pouco do seu almoço e deu-o ao cachorro.

Ficou claro para ambos que nascia naquele instante uma grande amizade e que seriam amigos inseparáveis.



Para o cachorro não ter de correr atrás da bicicleta o Manuel adaptou um cesto entre o guiador e o selim e era mesmo engraçado ver o Faísca a ir trabalhar todos os dias com o seu dono. O Cachorro era mesmo bonito, branco com manchas amarelas, pelo comprido, cauda de raposa e um ar muito ladino. Os hábitos do dono já eram bem conhecidos do Faísca que, de manhã, não era preciso chamar por ele, pois já estava dentro do cesto em cima da bicicleta quando o Manuel aparecia à porta de casa. À tarde, quando o sino da torre da igreja dava as cinco badaladas, o Faísca ia logo ter com o Manuel para ele largar o trabalho. O Manuel saía da oficina com um certo alívio por ter chegado o fim de mais um dia cansativo de trabalho e rumava para a taberna da aldeia onde fazia escala antes de chegar a casa. Todos os dias cumpria religiosamente aquele ritual com o Faísca. Na taberna, comentava com os amigos:

- Desde que adoptei aquele cachorro que a minha vida mudou e até está mais divertida. O Faísca é um brincalhão e faz-me muita companhia!



Aqueles copitos bebidos com os amigos davam-lhe muito prazer.



O Manuel já estava habituado a ver umas borras próprias do vinho zurrapa no fundo de cada copo, mas desde que o Faísca entrou na sua vida, o copo passou a mostra-lhe umas caras. O Manuel estranhou, mas de imediato pensou que tinha bebido um copito a mais sem dar por isso. No dia seguinte, mais atento, o Manuel percebeu que no fundo de cada copo que bebia aparecia a imagem de um santo. Intrigado, começou a falar com o Faísca no caminho para casa.

- Não percebo nada disto Faísca, mas desde que te adoptei que coisas muito estranhas me estão a acontecer.

O Faísca que não tinha o dom da palavra só dizia Auh! Auh!...Auh! No dia seguinte o Manuel levou lápis e papel para escrever o que via no fundo do copo, porque depois de dormir já não se lembrava qual o santo que tinha visto. Mas o copo resolveu pregar-lhe uma partida e no meio das borras estava um peixinho com a boca toda aberta. Aí, o Manuel, que ainda só tinha bebido um copito, sentiu uma faísca na cabeça e lembrou-se que na oficina estava a fazer os peixes de pedra para a fonte da vila que ia ser inaugurada naquele verão. Mais uma vez fez a viagem a falar com o Faísca, ou melhor, ele falava em voz alta para ver se alguma explicação lhe chegava aos ouvidos trazida pelo vento, mas nem o vento queria imiscuir-se no assunto, nem o Faísca estava interessado em esclarecer o caso.



A fonte foi levada para o local escolhido. Ficou no bonito jardim da vila que foi feito aproveitando o relevo natural do local que se estruturava em socalcos e ficou encostada a uma parede muito soalheira. Tinha uma bica central e em baixo sete peixinhos que também deitavam água pela boca.

Toda a vila gostou do trabalho do Manuel e a fonte dava mais vida ao bonito jardim. Quando lhe dava o sol em cheio e estava um bocadinho de vento até se via o arco-íris. Quem lá passava todos os dias começou a perceber que algo de estranho acontecia naquela fonte. Quando passavam de manhã, os peixinhos estavam virados para nascente. Quando passavam ao meio-dia, os peixinhos estavam virados para sul. Quando passavam ao fim da tarde, os peixinhos estavam virados para poente. Todos os dias de sol os peixinhos rodavam que nem girassóis. O fenómeno, insólito, já era comentado por toda a vila. As pessoas perguntavam se aquilo era um milagre, um presságio ou magia.

Foram ter com o Manuel para pedir uma explicação mas este ficou de boca aberta. Já tinha ouvido um zunzum mas achou que eram os amigos da taberna a gozar com ele e por isso não tinha ligado nenhuma.



No dia seguinte apareceu lá na oficina o comprador da estátua do São Pedro que veio de muito longe, de propósito, para dizer ao Manuel que já tinha visto o seu santo a verter lágrimas cor de vinho. O Manuel ficou sem saber o que dizer. Coçava a cabeça para ver se saía alguma ideia mas não tinha mesmo nenhuma explicação para dar. Todos os últimos santos vendidos tinham a faculdade de chorar lágrimas de sangue. Todos os compradores faziam questão de passar na oficina do Manuel a relatar o facto motivados pela notícia do caso misterioso da fonte dos peixes girassol. Intrigado com o assunto, o Manuel achou que quem o poderia ajudar a esclarecer o mistério seria a bruxa e sendo assim foi procurá-la. A bruxa consultou os astros, o tarot e os espíritos e disse ao Manuel que ele tinha uma missão muito importante cá na terra e em breve ia ter uma grande surpresa. O Manuel saiu de lá mais baralhado e arreliado do que quando entrou porque a bruxa ganhou o dinheiro e nem sequer adivinhou o que iria acontecer no futuro.



Como já era hábito do Manuel comentar a sua vida com o Faísca, pediu-lhe ajuda, mas este que até sabia o porquê de tudo isto, não o podia esclarecer porque não podia falar.

Entretanto a água da fonte foi ganhando algum verdete. O Inverno chegou e as pedras da fonte foram perdendo aos poucos aquele brilho de novo, mas continuava a ser um monumento muito bonito do qual o Manuel se orgulhava muito. Um dia estava o Manuel na taberna a beber uns copos e no último copo que tinha bebido apareceu nas borras uma nota de 500 euros. Era muita a confusão na cabeça do Manuel. Esta mensagem não era nada óbvia e por muitas voltas que desse ao miolo não achava resposta. De repente, o Faísca que estava lá fora à sua espera, ladrou. Na sua cabeça deu-se um click e o Manuel percebeu de imediato que a única coisa que tinha a fazer era aumentar os preços do seu trabalho, porque quem queria obra mágica tinha de pagar bem mais caro.



Não tardou muito o Manuel passou a ser um homem rico. 



M.
www.bebebabel.com.pt




2 comentários:

  1. Olá M,
    Mais uma vez, parabéns pela sua delirante imaginação...!!!

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  2. Olá Lias.
    A caixinha de pandora ainda tem mais delirante imaginação para divertir quem gosta de ler.
    Obrigada.
    M.

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