quinta-feira, 29 de setembro de 2011

TI ZÉ DA BOINA

Noites e noites sem dormir. Andava assim o Ti Zé da Boina, desde que recebeu a carta de despedimento da fábrica de calçado onde trabalhou desde sempre. Já lá iam mais de sete luas e o Ti Zé não se conformava. Nem ele, nem a sua mulher, também de sempre, a Bina. Não havia nada a fazer. Tinha de se convencer que assim era. Com a idade que tinha, ninguém o queria para trabalhar. Infelizmente, como ele, havia muitos mais na vila.

Cabisbaixo e muito pensativo andava o Ti Zé. Nem o sol lhe aquecia a alma. Nem a Bina o conseguia animar com o seu feitio brincalhão. Dona de casa competente, a Bina entretinha-se a fazer de tudo um pouco. Cuidava da casa, dos bichos, da horta e assim se mantinha ocupada, o que era bom para a sua cabeça. Ti Zé, sentia que tinha de fazer algo. Mas o quê? Queimou as pestanas de tanto pensar e afinal a solução era bem simples: Sapatos! Era o que ele sabia fazer e ia continuar.

Receoso, muito inseguro, teve de ganhar muita coragem para contar à Bina o que andava a pensar: montar uma oficina nos anexos e fazer sapatos. Não eram quaisquer uns. Eram sapatos especiais. Sapatos para palhaços.

A Bina ouviu com toda a atenção mas ficou muito receosa quanto ao sucesso da ideia do seu marido. Ficou a moer na ideia. Afinal não há assim tantos palhaços. Nem vê-los, nas aldeias do interior. Como é que iriam fazer sair os sapatos dos anexos?

No fim-de-semana seguinte a conversa repetiu-se, mas, desta vez, com o seu neto favorito, o mais velho, de quem era um grande admirador pelo seu feitio optimista e brincalhão.
- É fácil avô. Eu trato das vendas! - dizia o neto todo entusiasmado pois sabia que na volta ia receber uns trocos.

O avô confiou. Sem ter de sair de casa e só com o computador, o Ti Zé continuava sem perceber muito bem como é que ele ia fazer sair os sapatos dos anexos.

Ti Zé idealizou os seus primeiros sapatos de palhaço muito coloridos, grandes para burro, cordões grossos, muito garridos, muito redondos, altos na frente e meteu mãos à obra, com o seu coração a transbordar de alegria que nem lhe cabia no peito.

Sempre muito entusiasmado o Ti Zé foi acumulando os pares de sapatos nas prateleiras do anexo durante alguns meses.

A Bina até achava piada aos folclóricos sapatos mas falava com os seus botões. Será que vão mesmo entrar no circo?

De repente, com grande surpresa e espanto do Ti Zé os telefonemas começaram a chover. Telefonemas e não só. Os próprios artistas faziam questão de ir pessoalmente fazer a compra. E todos ficavam contentes com a qualidade do trabalho do Ti Zé.  A perfeição era por demais evidente e mais espantados ficavam os palhaços quando experimentavam tão agradável conforto nos seus pés. Até parecia que caminhavam nas nuvens, de tão fofos que eram.

A Bina ficava babada de orgulho quando toda a gente lhe falava no sucesso, que já tinha passado a fronteira da vila.

Choviam encomendas. Foi um passo até aparecerem os palhaços dos circos estrangeiros. Aí, o Ti Zé da Boina passou a ter os melhores sonhos da sua vida. Sonhava muito e até se conseguia lembrar de muitos deles de manhãzinha, enquanto se barbeava. Alguns eram bem estranhos e divertidos. Sonhava muitas vezes, que voava.


Um dia parou na rua um carro de matrícula estrangeira. À sua porta apresentava-se um gentleman. Receberam-no o melhor que sabiam e com a ajuda de um intérprete que ele trazia, lá se entenderam. O Ti Zé da Boina acabava de receber uma encomenda muito especial. O gentleman queria uns sapatos muito originais feitos conforme o seu próprio desenho. Todos os pormenores, cores, feitio, sola, tudo… e mais umas asas! O Ti Zé até achou piada. Fazer uns sapatos com asas!!! Era um desafio, mas não sabia à partida como ia fazer semelhante esquisitice. Chegou mesmo a pensar nas coloridas penas das suas galinhas.

Muito amor e dedicação pôs o Ti Zé na confecção dos sapatos alados do gentleman.
O resultado final até surpreendeu o próprio Ti Zé. No entanto era sempre uma angústia separar-se daquelas peças que ele fazia com tanto amor e carinho. Parecia-lhe que estava um filho seu a sair pela porta fora.

Os sapatos alados lá viajaram sozinhos até ao The Rainbow  Circus, na velha Inglaterra. O palhaço gentleman tinha criado um número novo para aqueles sapatos. Até o andar que tinha de fazer era diferente. Parecia que tinha ovos frescos entre as pernas!
Logo na estreia ele achou que os sapatos tinham um comportamento estranho, parece que tinham vontade própria e o queriam levar para outro lado mas ele não ligou. Alguns espectáculos depois, essa tendência foi-se acentuando e o palhaço gentleman teve de redobrar a sua atenção no comportamento dos sapatos alados. Decorridos alguns dias de estrondosas actuações, os sapatos alados resolveram dar o ar da sua graça.

Uma noite, estava a sala cheia, como de costume, o público entusiasmadíssimo, quando, de repente, os sapatos saíram dos pés do palhaço e começaram a dançar sozinhos no palco,  que nem umas marionetas. A assistência entrou em delírio e o palhaço gentleman estava muito surpreendido sem saber bem o que fazer.

No espectáculo seguinte os sapatos ainda foram mais longe. Levaram também os pés do palhaço gentleman e dançaram ao ritmo da música. Meia dúzia de passos e voltaram a encaixar nas pernas do palhaço, que entretanto não teve outra saída senão sentar-se no chão de pernas cruzadas.

Indescritível a reacção do público. Aplausos e mais aplausos, toda a plateia de pé.

O palhaço-gentleman é que não percebia nada do que se estava a passar. Apanhado de surpresa, fazia a cara mais ingénua deste mundo, o que lhe assentava muito bem.


Apesar de todo o sucesso, o palhaço-gentleman andava muito preocupado e com mau dormir, pois não sabia o que poderia acontecer no espectáculo seguinte. Não havia dúvida. O Ti Zé da Boina tinha feito os sapatos com vontade própria e isso não fazia parte da encomenda. Num sonho o palhaço-gentleman viu o Ti Zé na assistência com uma cara muito comprometida.

Apesar dos receios o palhaço-gentleman resolveu arriscar e continuar com o mais estrondoso número de toda a sua carreira.

No espectáculo seguinte, contra todas as expectativas, os sapatos não saíram dos pés mas uma sensação de levitação começou a percorrer o corpo do palhaço-gentleman. Incrédulo e muito sorridente, olhou para a assistência e lá estava o Ti Zé da Boina ao lado do seu neto, na primeira fila, com um ar muito feliz a dizer-lhe adeus. Nesse instante os sapatos começaram a bater asas e era só ver a cara do público a olhar cada vez mais para cima, a esticar o pescoço, esticar, esticar, que nem girafas para ver o palhaço-gentleman,  a subir por artes mágicas, furar a tenda e desaparecer.

Nunca visto! Seria ele um palhaço ou um ilusionista?

Um silêncio sepulcral invadiu aquela sala. O tempo parecia que tinha ficado em aflitiva suspensão. Os segundos eram eternos. De repente, as bocas abertas de espanto começaram a gritar em uníssono, volta! Volta! Volta!

E nada. Nada de palhaço. Nada de gentleman, nada de sapatos…

O palhaço que deveria aparecer para receber tão calorosos aplausos não voltou.

Ainda hoje, quando aparece o arco-íris no céu, se vê o palhaço-gentleman deitado na risca verde, com os seus brilhantes sapatos vermelhos, de asas brancas e compridos cordões azuis que cresceram e quase tocam na copa das árvores.

M.

(Este conto é dedicado à minha amiga Majo que festeja hoje o seu aniversário.)







7 comentários:

  1. Olá M.
    É engraçado como põe colorido na escrita!
    Bjs.

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  2. Olá Lias.

    A escrita e a vida tem de ter muita cor, senão não presta.
    Fico muito contente por ver as cores com que escrevo.
    Beijinhos.
    M.

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  3. Olá verde, daqui a amarela, como está o azul daí? Aqui está tudo vermelho e preto, com pinceladas de branco pelo meio. Os cinzentos estão cada vez mais riscados pelos tons do Outono, mas o importante é que o anil continue anil e que o castanho combine sempre com o bége. Muitos beijinhos azuis e verdes como os dos piriquitos e obrigada pela dedicatória prateada. Gostei muito. Até breve, até lá muitos verdes e amarelos e roxos. majo

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  4. Olá amarelinha Majo.
    Aqui tudo cor-de-rosa. O Azul é mais para a noitinha.
    Hoje o meu almoço foi verde alface e verde garrafa.
    Férias tricolor e muito sonhos dourados para o
    simpático casal. Se houver por aí um circo vá ver o palhaço-gentleman. Se não houver vá a casa do Ti Zé da Boina vê-lo a fazer sapatos.
    Beijinhos.

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  5. Amei, a menina tira cada conto dessa cartola colorida que quando a vamos começar a ler, já sabemos que vêm lá escritinhos deste e do outro mundo! Adorei, adorei a magia e é bom quando a nossa mente viaja e nos pode dar coisas tão diversificadas que , só podemos espantar quem nos lê...

    Um grande e apertadinho abraço

    laura

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  6. Olá Laura
    É muito bom receber estes comentários que funcionam como um balsamo para o meu ego e me dão animo para continuar.
    É também muito bom saber que os meus contos dão tanto prazer a quem os lê.
    A cartola ainda tem mais magia para por cá fora, é só esperar pelo próximos.
    Escrever está a tornar-se uma necessidade para ocupar o tempo que me sobra.
    Muito obrigada por passar uns minutos comigo.
    Beijinhos.
    M

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  7. E é mais raro gostar de ler os escritinhos, pois escritores são aos montes, o pior é escreverem algo que nos diga alguma coisa também...

    Gosto, não adivinhamos o que lá vem, a não ser que se acabe de ler...

    Grande abraço e um dia destes meto-me a caminho e com a Zé, podemos encurtar o tempo que sobra.

    laura

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