sexta-feira, 29 de julho de 2011

A Avó Maria


Decorria o ano de 1954 quando o  António José emigrou legalmente para  França,  fugindo ao salazarismo e à miséria que se vivia em Portugal.
António José, solteiro e filho único, o que era coisa rara naquela época, abalou com o pouco ou nada que tinha e deixou pai e mãe de boa saúde na aldeia onde moravam no norte do país. Já estava habituado ao frio e não estranhou o clima do norte de França onde passou a viver e trabalhar, sabe Deus em que condições. Lá foi levando a vida, e desde trabalho na construção civil até biscatada, o António José topava a tudo. Trabalhava muito, sempre com a ideia de enriquecer.
Para combater a solidão que lhe ia na alma e já quase a chegar a trintão, achou que tinha chegado a altura de casar e constituir família. Procurou namorada e acabou por casar com a Alzira. A Alzira foi-lhe apresentada por um colega de trabalho de quem era irmã. Esse colega era o seu companheiro de quarto e confidente.  Ficaram namorados e para conforto do António José, a Alzira era natural de uma aldeia vizinha da sua o que lhe deu algum sossego, pois foi mais fácil ter informações da rapariga. Depois dos papéis tratados lá se casaram. O casamento não foi digno de registo, porque o António José não deixou a Alzira comprar o vestido de noiva, nem gastar dinheiro na boda, o que a deixou muito triste. O António José sempre lhe dizia, não te preocupes que quando formos em Agosto à terra, fazemos lá um casamento de arromba. Todos os anos a boda era adiada, porque o António José achava que no ano anterior já tinham gasto muito dinheiro com as férias. E assim, ano após ano lá foi iludindo a Alzira e nunca cumpriu com o prometido.
Ficarem por cá era impensável, porque gostavam da França e aí continuaram. A vida sempre era melhor do que cá e os sonhos mais fáceis de realizar. António José entretanto foi tendo várias profissões, mas por falta de escolaridade nunca pode sair do trabalho não qualificado. A Alzira fazia limpezas nas casas das madames. Com esforço, educaram os seus dois filhos, um casal, a quem deram cursos superiores. O rapaz tirou medicina e a rapariga economia.

Apesar de serem uns mouros de trabalho, nunca fizeram fortuna. Investiram na educação dos filhos, tinham o seu carro e no verão faziam questão de vir passar as férias a Portugal, e lá vinha a família toda visitar os parentes.
Nunca o António José levou a Alzira ao Palácio de Versalhes, nem tão pouco à Notre-Dame de Paris.
E assim se foram passando os anos e nunca o casal pensou regressar.

Alguns anos mais tarde, a mãe do António José ficou viúva. Como ele era filho único as coisas ficavam difíceis de gerir à distância. A mãe não teve outro remédio e foi morar para França pois era a melhor solução para todos. Depois de muito pensar e discutir com o filho, a avó Maria lá se decidiu a emigrar com a idade tão avançada. Para esta decisão muito contribuiu a promessa do seu querido filho de que seria enterrada no cemitério da aldeia que a viu nascer. Ficou assim mais tranquila pois tinha de vir fazer companhia ao seu Joaquim. Partir era mais sensato do que ficar sozinha na aldeia de onde já muitos tinham saído, pensava ela quando rezava e falava à noite com o falecido.
Aproveitou a visita anual do filho e preparou a sua ida para França, com muita mágoa e tristeza, por deixar a casinha de toda a sua vida e o Joaquim na sua última morada. Tão bonita que estava a campa, pensava a Avó Maria quando, pela última vez rezava pelo Joaquim, aos pés da campa onde tinha enterrado parte das suas poupanças.
Assim, lá foi a Avó Maria que nunca tinha saído da aldeia para sítio nenhum, nem para ver o mar, nem para ir a Fátima.
Os anos da França da Avó Maria não foram lá muito bons para ela. Não falava francês e não entendia aqueles costumes afidalgados dos netos e muito menos aqueles hábitos de comer a salada na frente e os queijos bolorentos no fim da refeição.
Nos primeiros tempos andava um pouco doente mas não sabia bem o que tinha.
- São só saudades, minha querida avozinha! - Dizia-lhe o neto enquanto a auscultava e lhe media as tensões.
                                                                                   
Anos depois, e sem que ninguém suspeitasse, a avó Maria faleceu repentinamente aos oitenta anos, uma semana após o bonito e dispendioso festejo que a família lhe preparou para tão bonita idade.
Como a morte não escolhe a melhor altura, o António José tinha agora um problema, o de levar a mãe para enterrar em Portugal como lhe tinha prometido. Ele sabia que ia gastar uma pipa de massa, que não tinha,  para levar o corpo. Ficou muito apreensivo e teve uma conversa muito secreta com a Alzira.
No próprio dia do falecimento, não disse nada a ninguém e, pela calada da noite, preparou o carro e o atrelado que costumava levar nas férias e abalou em viagem.
Nas viagens longas, a paragem a meio do caminho era obrigatória. O cansaço e a idade do António José já não lhe dava segurança para fazer tudo de seguida.
Já em Espanha e depois de encherem o depósito na área de serviço ficaram a dormitar no parque próprio para as pequenas paragens dos viajantes, mais à frente. O medo era muito.
Passadas duas horas a Alzira foi a primeira a acordar e saiu do carro para esticar as pernas. Olhou para as traseiras do carro e   deu um grito.
- Ai Tó Zé, anda cá depressa! - E pondo a mão na boca não disse mais nada.
O marido veio cá fora e ficou branco como a cal vendo a mulher a apontar para o carro. O atrelado tinha desaparecido. Enfiaram-se os dois no carro e não tinham palavras. Ficaram completamente mudos.
 Passados uns largos minutos e depois de tanta aflição o António José disse:
-  E agora Alzira? E a promessa?
- Não sei que te diga! A ideia foi tua!  Tu e a tua mania de poupar é no que dá. Se não fosses tão unhas-de-fome nada disto nos estava a acontecer.
 - Olha lá! Quem é que ia adivinhar uma coisa destas?! Escusas de ralhar que não resolves nada com isso! Tinha de ser logo o nosso atrelado, disse o António José com as duas mãos agarradas à cabeça.

- Vamos à polícia! - Disse a Alzira.
- Nem pensar, vamos presos!
- Isto não estava nos meus planos! É preciso ter muito azar. Estamos de mãos atadas. Todas as ideias que me vêm à cabeça não vão resultar!
 - E agora que fazemos? - Perguntou a Alzira que tinha a cabeça mais que vazia.
Muito chateado e com o coração apertadinho de remorsos disse o António José:
- Não dá para continuar viagem, por isso só temos uma solução! Voltamos para trás! 
O António José  decidiu e assim aconteceu.

Mais tarde e longe do local do roubo estão dois homens de cerca de trinta anos, estarrecidos, a olhar para o atrelado roubado.
Manolo, de olhos esbugalhados e a tremer que nem varas verdes gritava:
- Não pode ser!!! - Isto não nos está a acontecer!
- Está calado, não berres! - Gritava por sua vez o Pepe, ajoelhado e a benzer-se com a mão esquerda e a mijar-se todo de medo:
 - A culpa é tua! Tu é que escolheste este atrelado. Por mim, nesta noite não tinha saído de casa. Parece que já adivinhava. Tinha uma pulga atrás da orelha a dizer - não saias, hoje é  dia  mau -  mas tu passaste lá em casa e obrigaste-me! Agora descalça a bota!
Desesperado, Manolo não ouvia nada do que o Pepe dizia. Só  sentia a cabeça a fumegar, o corpo a transpirar e ele sem saber se havia de rir ou de chorar.
Sentou-se numa rocha e começou a raciocinar.
Depois de se acalmar, inspirando bem fundo, disse:
- Que roubo é este que não dá para passar a mercadoria a patacos  e ainda temos um problema de morte para resolver!
 - Olha lá, tu tiraste a matrícula do carro?
- Eu não. E tu?
- Também não! Estamos de mãos atadas!
- Não podemos ir à polícia?
- Claro que não.
- Só temos uma solução. Fazemos nós o funeral da aboelita. Seja lá ela quem for, ficará bem guardadinha neste caixão andante, lá no cimo do monte, enterrada nas ruínas daquela capelinha.
 - Porreiro pá, quando eu morrer vou querer um caixão assim,  porque não me vai faltar o ar. Olha lá, tiramos as rodas ao caixão ou deixamos assim?

Todas as noites o António José sonha com a mãe que lhe diz:
- Descansa meu filho. Eu sei que não foi por mal. A culpa foi minha, que nunca te disse que tinha uma saca escondida em casa  com o dinheiro para o meu funeral.
Sorridente, dava um beijo cheio de ternura na testa do filho e desaparecia.

sábado, 16 de julho de 2011

O MISTÉRIO DA RUA 13


A rua 13 era povoada por algumas famílias. Não tinha prédios e também não tinha saída, ou seja, ao fim da rua tinha um grande campo de cultivo onde se podiam ver as culturas sazonais, o que dava um certo encanto ao local. Era uma parte nova da cidade que apostava no sossego e onde se podia usufruir de alguma ruralidade, o que era coisa rara nos tempos que correm.

No número 437 da rua 13, algo de estranho se passava. A família que lá morava tinha comprado a casa há pouco tempo e estava muito contente por lá morar, pois podia criar os filhos ao ar livre. O jardim das traseiras proporcionava às crianças o espaço ideal para as suas correrias e brincadeiras, sem terem de sair de casa.

O jardim ainda não estava bem acabado e ia sendo construído aos poucos pelos donos da casa, que gostavam imenso de jardinar ao fim de semana. Quem mais  se dedicava, era, sem dúvida, a Maria José que tinha passado a sua infância na aldeia, o que fez com que o chamamento da terra se tivesse entranhado nos ossos, assim como se entranha o nosso nome. O marido dava mais palpites que outra coisa, mas de vez em quando metia as mãos na terra para plantar as árvores que iriam ver crescer, ao mesmo tempo que os seus filhos.

Nesse ano foi plantada uma magnólia junto à garagem para dar sombra no verão e, na primavera, embelezar a casa com as suas flores cor-de-rosa.

Junto da lavandaria existia o estendal da roupa que se utilizava sempre que o tempo estava bom. A roupa era lá pendurada e, quando havia tempo era recolhida, ou ficava lá, mesmo já estando seca, porque quem trabalha não tem tempo para tudo. Esta tarefa era só dos adultos, pois os putos ainda eram pequenos, o João de 3 anos e a Clara de 7 anos,  já tinham tarefas domésticas atribuídas, coisas simples e fáceis, tais como limpar a relva que servia de quarto de banho da Pipoca. A Pipoca era a cachorrinha rafeira e meiguinha lá de casa, muito ladina e que lhes fazia muita companhia.

Bom, e voltando ao  mistério da rua 13…

Continuava o desaparecimento sistemático das meias pretas. O curioso é que só desapareciam as meias pretas do papá, dizia a Maria José aos vizinhos. Sim, porque o caso já era falado em toda a vizinhança. Andava tudo intrigado. Mas o que será e para que será que querem as meias pretas?! Só as meias? Era muito estranho e, ainda por cima, só daquela casa. Conversa, puxa conversa e nada de pistas para descobrir o mistério. Um vizinho dava um palpite, outro dava outro, mas nada de concreto. Nenhuma pista.

A família não teve outra solução e colocou uma câmara de vídeo para deslindar o caso.
O investimento era justificado pelo facto de que servia no futuro para vigiar e proteger a casa. Não era pelo custo da constante renovação do stock de meias, por isso, foi posto em prática.

Instalado o equipamento, passado dois dias o mistério estava definitivamente desvendado.

A gargalhada foi geral quando a família se reuniu para ver a gravação. Não queriam acreditar no que viam. O Pim-Pan-Pum, o gatão da vizinha da frente, a saltar à corda e duma penada apanhava duas meias com as patas da frente. Só parava quando tinha as meias todas e por vezes eram os pares todos de uma semana. Depois da pescaria, juntava-as e desaparecia com as meias. Este trabalho era sempre feito pela calada da noite. O mistério do destino das meias ainda hoje está por desvendar. Indagada a vizinha da frente, esta não é capaz de descobrir o que o gato fazia com as meias. O problema ainda está por resolver.

Uma coisa é certa.
O dono do 437 da rua 13 é um grande comerciante de peixe fresco. E a família do 437 ainda tem um problema entre mãos.
Terá o dono da casa de mudar de profissão?
Terá o pobre do Pim-Pan-Pum deixar de ser noctívago?

E você, cara/o leitor/a:
- Onde pensa que foram parar as meias pretas?
- Como acha que a família do 437 vai secar as meias pretas?
Gostaria de desvendar estes mistérios?

M, 16 de Julho, 2011

terça-feira, 12 de julho de 2011

Cá se faz cá se paga

Terceira idade. A meta final da vida. Assim estão a Alice e o Manuel, sentados na área de restauração do Norte Shopping a saborear um lanche de sábado à tarde.
Filhos criados, netos com os pais, toca a distrair para não ficar em casa. A Alice é dona de casa e esposa de um comerciante. Cabelo bem arranjado, uma vez por semana ida ao cabeleireiro, pois a Alice tem cabelo loiro sem uma única branca. A roupa é de qualidade e na mão esquerda junto à aliança de casamento tem um bonito anel com diamantes, o que demonstra estatuto social. O seu rosto, de pele clara e brilhante e olhos expressivos, fazem de Alice uma mulher interessante, mesmo com esta idade. Pela sua postura, dá para entender que é uma mulher aprumada e, atrevo-me a pensar que é uma excelente dona de casa, muito dedicada à família e marido.
O lanche globalizado com coca-cola deixou o Manuel aflito, porque palita os dentes. Será que a coca-cola lhe ficou agarrada à placa? Vício muito feio, este de palitar dentes. A sua passividade é notória porque quase não se mexe na cadeira, nem roda o pescoço para ver passar os manequins que circulam sempre nestes espaços urbanos. Sua amantíssima esposa arruma as sobras do lanche na saca do híper que contém os frescos do dia. Uma vida com grande actividade no passado, mas sem grandes emoções no presente,  o que faz com que apreciem estes bocadinhos de lazer.
E por falar do passado,  vamos entrar na fase áurea do casal Nogueira.
Ele vendia lingerie feminina e masculina numa loja da rua das Flores. Ela não sabe da missa a metade, mas naquela loja muita prova foi feita. O Manuel não tinha empregados e lá ia dando conta do recado sozinho. Numa certa altura da vida de Alice, em que a educação dos filhos já não a ocupava o tempo todo porque já andavam na escola, falou com o marido para dar uma perninha na loja, sem horário rígido, para poder continuar com as tarefas caseiras. Tudo não passou de um desejo, pois o Manuel rapidamente a dissuadiu de tal, argumentando que não lhe reconhecia nenhuma vocação para o negócio, nem tão pouco simpatia para atender clientes. Assim se foram passando os dias e a Alice sempre em casa. Conservava um pequeno grupo de amigas de infância com quem lanchava de vez em quando, pois estes momentos eram importantes para falarem de banalidades e para se lamuriarem dos feitios dos maridos e dos problemas dos filhos. Fora isso, era o lavar, passar a ferro, cozinhar, etc. etc.
O Manuel, esse sim! Do 36, copa A, do 38 copa B e por ai fora, ia tirando as medidas a todas. Todos os dias, mais ou menos ao fim da tarde, passava na rua a Florbela, peixeira atrevida do mercado do Bolhão, de quem o Manuel não gostava nada e com razão, pois a descarada, junto da sua porta cantarolava:
- Vale mais uma na mão que duas no soutien!
Bom negócio fez o Manuel, que manteve o casamento perfeito. A  Alice nunca desconfiou da infidelidade do seu querido marido. Tudo perfeito para um casal de classe média, até que algo de estranho começou a acontecer naquele confortável lar.
A Alice, nos últimos tempos, tinha muitas insónias, razão pela qual todas as tardes saíam de casa para não adormecerem no sofá em frente à televisão. Mas nem assim as insónias iam embora.
Com muita frequência a Alice se levantava durante a noite e quando ia ao quarto de banho passava na sala e ficava toda baralhada. Não sabia se estava a dormir ou se estava acordada. Esfregava os olhos e acendia a luz do candeeiro pequeno para não acordar o marido, de quem tinha muita inveja porque dormia a noite toda.
Alice  não acreditava no que via.
Voltava a deitar-se e ficava a matutar no assunto, o que lhe  agravava a falta de sono. Ficava calada e não comentava nada com o Manuel, não fosse ele julgar que ela estava a ficar maluca.
No dia seguinte a mesma coisa.
A cena repetiu-se durante noites e noites e parecia não ter fim.
Um dia a Alice encheu-se de coragem  e parou em frente do sofá onde ela, com os olhos esbugalhados, via sete homens sentados.
No sofá de quatro lugares, estavam sentados os sete homens. Quatro  sentados normalmente e os outros três nas costas do sofá, com os pés pousados nas almofadas.
Começou a falar para eles, mas nada, nenhum deles falou. Aproximou-se e verificou que respiravam. Passou-lhes a mão em frente aos olhos e todos eles reagiram ao seu teste visual.
Cada vez mais intrigada e sem saber o que fazer, sentou-se no sofá individual. Pensou por uns segundos e chegou à conclusão que não  eram ladrões, porque aqueles rostos não eram bem reais.
 Mas alguma coisa tinha de fazer. Foi ao quarto acordar o marido e sem explicar nada, levou-o até à sala.
- Oh Manuel, que vem a ser isto, que eu não entendo nada do que se passa aqui! Estou a dormir ou estou acordada?
O Manuel olhou e ficou branco como a cal. Se não fosse a Alice tinha caído redondo no chão. Prontamente, a sua amantíssima esposa foi buscar um copo de água com açúcar para levantar as tensões do Manuel.
Os sete homens sentados no sofá, pareciam estátuas de cera.
Findos alguns minutos e depois do muito silêncio que fazia naquela sala, o primeiro homem falou com uma voz cavernosa e disse:
- É ele! É ele, o pai do meu filho!
Outro dizia:
- Era ele que durante anos me escolhia a roupa interior!
Um terceiro dizia:
- Bom homem,  o Manuel,  que enquanto eu pulava a cerca  entretinha a minha mulher!
O quarto só fez o gesto de quem gostaria de lhe apertar o pescoço. O quinto disse-lhe que tinha uma grande dívida para com ele, pois nunca tinha dado dinheiro à mulher para comprar a exagerada e excitante lingerie com que era seduzido na cama. O sexto não falou porque era gago. O sétimo pegou na pistola e como tremia muito, porque tinha morrido com Parkinson, disparou um tiro que matou a Alice.
Assim ficou viúvo o pobre Manuel.
O funeral da Alice é amanhã, às 10 horas.
M, 12 de Julho, 2011

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Joaquim e Joaquina


Tinha saído para o meu passeio após o almoço e deparo com a cena mais caricata de sempre. Ela, furiosa, aos berros em plena rua, a ralhar com o seu companheiro:
- Vai, vai, tens de ir.
Ele, todo encolhido, não sabia onde se meter. Nem fugia, nem respondia.
Cada vez mais furiosa perante tanta indiferença, desatou a bater-lhe e, continuando aos berros:
- Vai, vai, tens de ir, não podes ficar.
Ele, cada vez mais cabisbaixo caminhava lentamente como se nada lhe dissesse respeito.
- Olha, olha para aquilo!!!
- A mulher não está boa da cabeça. Onde já se viu? A tradição é o homem a bater na mulher. Oh Bina, anda cá ver isto. Oh mulher, aquela galdéria a bater no marido. Será que é marido?
- Não importa. Deve ter bebido forte e feio, para fazer um teatro destes. Coitado do homem, um pobre diabo. O mundo assim nunca mais fica direito.
- Deixe lá minha mãe. Eles também precisam de ser ensinados. Ela deve estar a fazer uma boa acção. Os homens por vezes parecem crianças e precisam de umas boas surras.
- Oh filha, Deus me livre se eu batia assim no falecido. Ia de certeza parar ao hospital.
De repente a janela fechou-se. Na rua, a cena já tinha acalmado. Ela começou a subir em direcção à rua escura. Ele continuou no mesmo sentido descendente em direcção ao rio. Curiosa como sou e numa tentativa de ajudar o pobre infeliz segui as suas pisadas e, mais à frente, acertei o passo com o dele.
- Boa tarde, disse eu.               
Ele não respondeu mas vi na sua cara um leve sorriso.
- Desculpe, posso ajudar?
- Em quê minha senhora? Não há quem a convença!
- Olhe lá, tenho meia hora até voltar ao trabalho e gostaria de saber se precisa de alguma coisa.
- Não, não, minha senhora, não preciso de nada. Acho que já nem o médico me pode ajudar.
- Foi estranha aquela cena de há pouco, disse eu.
- Pois é, pois é, mas mais estranho era, se eu lhe contasse a razão daquela zanga.
- Oh homem desabafe. Falar faz bem. Desembuche. Olhe que ficar calado faz muito mal aos nervos.
- Tem razão, senhora.
O homem parou de repente, pestanejou e levou a mão direita à boca e começou a roer a unha do polegar. Ficou assim um momento,  depois olhou em frente e estremeceu com o chiar das rodas da carroça que passava naquele momento. Pareceu despertar para a realidade e as palavras saíram-lhe de jorro:
- Não é que aquela maluca me obriga todos os dias a fazer a mesma coisa? Depois de almoçarmos corre comigo de casa. Sabe,  moramos na rua escura, numa casinha de rés-do-chão muito pobrezinha onde moraram também os meus pais  e por lá fiquei. Como não tinha ninguém para cozinhar, lavar a roupa e tratar da casa, isto porque enviuvei cedo, juntei-me com a Joaquina. No início, estava tudo às mil maravilhas, mas depois de ela saber que eu não lhe podia dar filhos, por causa de uma doença que apanhei no ultramar, ela nunca mais me deu descanso. Imagine a senhora, que todos os dias, mas todos os dias, tenho de descer até ao rio, atravessar para a outra margem e logo, logo ali, existe um terreno baldio onde, por desconto dos meus pecados, sou obrigado a um trabalho muito estranho.
Neste ponto, o homem parou de falar, franziu o sobrolho e olhou-me com um ar muito infeliz e disse baixinho:
- Não sei se diga...
- Diga lá homem. Já agora, como se chama?
- Chamo-me Joaquim Faneca. Sabe, o meu pai era pescador e a minha mãe peixeira.
- Sim, sim Joaquim, mas diga lá o que é que tem de fazer no baldio.
- Bem, é estranho mas é a pura verdade. Não é que todos os dias eu tenho de encher seis garrafões com sol para os levar para casa e guardá-los na cozinha debaixo da mesa, debaixo da cama, pendurados no tecto, enfim onde houver um espacinho.
- Oh senhor Joaquim, diga lá, encher garrafões com sol?
- Sim, minha senhora. Nem mais nem menos! Cada garrafão demora meia hora a encher. Depois fecho muito bem a rolha e quando tenho seis começo a fazer a viagem até casa. Em cada viagem levo 2 garrafões o que dá para 3 caminhadas.
- Oh amigo Joaquim e qual é a razão dessa tarefa?
- Isso queria eu saber minha senhora. O que a Joaquina diz, é que com este sol consegue aquecer a casa. Chega o frio e lá vai ela buscar um garrafão. Abre a rolha e com o maior ar de satisfação deixa sair o sol que lhe aquece a casa. E mais. Ela até diz que cada garrafão dá para uma hora de aquecimento. Portanto seis garrafões por dia dão para o tempo em que está em casa depois de chegar da banca do peixe, até se deitar.
- É curioso. Agora explique-me uma coisa. Isso resulta mesmo?
- Não sei senhora. Quando ela chega a casa no inverno eu já não tenho frio. Sabe como é, sempre paro na tasca do Celestino e bebo um copinho.
- Estou cá a pensar. Esse trabalho é para o verão. E nos dias de inverno em que não há sol, sempre pode descansar e fazer o que lhe apetece.
- Qual quê,  minha senhora. Não, não! Nesses dias encho os garrafões com chuva e nevoeiro e vou deitá-los ao rio.
- Ah, muito bem senhor Joaquim.
 Educado e bom homem este Joaquim.
M,  4 de Julho 2011

segunda-feira, 4 de julho de 2011

A Parede Branca


Para lá da parede branca havia um hospital. Era um hospital especial:  Tinha maluquinhos.
 Isto é o que o povo dizia,  na gíria. Mas eram todos doentes. Muito doentes.
Uns, com falta de cor porque tinham a mania que o sol lhes comia a carne, depois os músculos e depois os ossos. Por essa razão não saíam do quarto que era todo branco, de uma limpeza asséptica e vestiam pijamas pretos que ligavam bem com a brancura.
Havia outro grupo, os coloridos. Esses sim, ar puro e livre. Gostavam de ver os gatos a brincar no jardim que eram todos pretos e brancos.
As tarefas estavam bem distribuídas.
Formavam grupos de sete. Sete homens. Sete mulheres. Não se misturavam homens com mulheres. Por experiência, sabiam que o resultado não era positivo. Vá-se lá saber porquê.
O grupo que contava as folhas das árvores, passava o  dia a contar as folhas das árvores. Só das árvores. Divididas por andares, cada um ficava com a sua fatia. Tarefa muito estimulante no verão, pois a folhagem era frondosa, contrariamente ao que acontecia no inverno, pois só restavam as árvores de folha perene o que tornava o trabalho fastidioso. Quem mais rápido contasse, tinha um prémio extra que, por norma, era material de pintura para pintar árvores em telas gigantescas que se estendiam pela parede branca.
O grupo que contava formigas, passava o dia a contar formigas. Era composto, por tradição, pelo pessoal feminino, pois era um trabalho de precisão. Consistia em fazer o inventário da espécie que estava em vias  de extinção. O terreno estava dividido por zonas e cada elemento trabalhava a sua zona. Não havia que enganar. Em cada formiga era colocado um chip com a identificação devida. Os ninhos tinham vídeo-vigilância e as novas formiguinhas eram marcadinhas à nascença. Era muito importante, pois todo o trabalho das obreiras era informatizado e desde o nascimento à morte sabiam a quantidade de trabalho produzido.
E assim passavam os dias numa grande azáfama. Pouco tempo sobrava para o lazer.
Trabalho bem pago era este, pois tudo isto era suportado pela Universidade do Bem Fazer. A Universidade do Bem Fazer  trabalhava todos os dados recolhidos e, em contrapartida, todas as despesas dos internados eram pagas pela referida faculdade.
Muitos outros estudos foram feitos e muitos mais estudos vinham a caminho.
As tarefas eram de acordo com o perfil dos doentes. Estes, rondavam os 35 e os 45 anos e tinham todos estado ao serviço da Finança Mundial, que no início do século XXI  (primeira década) tinham fabricado, a pedido,  a maior crise financeira mundial.
Ah! Falta dizer que os que tinham falta de cor  tinham sido, todos,  famosos políticos mundiais e que agora só comiam comida cinzenta.
M, Junho, 2011